Saturday, November 15, 2008

All'ultima stella (à última estrela)

Eu não saberia dizer exatamente quando, porque, naquela época, o tempo fugia do visor do meu relógio e se alastrava no espaço, com a leveza do gesto ainda suspenso no ar, como o intervalo da espera para sempre postergada. Muito menos saberia dizer como, pois não houve momento em que algo se tornou exato ou ponto no qual qualquer incerteza se transformou em verdade: todos os mecanismos improváveis funcionando em inédita harmonia. Não, nunca houve isso, bem como nunca houve razões para existir e crescer, com a força de algo latente, como se fosse algo maior do que sua própria existência: história antiga, velhos legados. Perigosamente imperceptível.



Era manhã e as luzes de alguns postes ainda estavam acesas, iluminando as pequenas manchas de neblina abaixo das lâmpadas laranja, dentro de suas pequenas conchas de metal. O sereno da noite acuou-se nas pontas das folhas e deitou seu orvalho gelado nas pedras da calçada, enquanto à frente dos prédios, um semáforo ainda piscava intermitentemente: “atenção, atenção, atenção”. Abaixo do edredom, o corpo de Melissa estremeceu com um vento frio que correu pelas frestas da porta da sacada e aninhou-se com mais exatidão ao colchão, forçando as reentrâncias aquecidas do seu corpo adormecido por horas. Do parapeito da janela, eu poderia refazer o calor aprisionado entre o lençol e as pernas dela, naquele espaço desenhado onde as minhas próprias pernas reconheciam os ângulos e vértice. E durante as pausas silenciosas dos cigarros, entre uma tragada e outra, o ruído da respiração dela ecoava pelo quarto, acariciando as cortinas escuras que impediam a insipiente luz do sol de chegar até os olhos dela, quando eu, então, dentro da minha própria mudez, segurava por mais algum tempo a fumaça seca nos pulmões para que absolutamente nada atrapalhasse o ar que, também sendo meu, deveria agora ser completamente dela.

Ao fundo, ouvia-se o leve despertar dos homens com seus bocejos de hálito envelhecido, o tilintar das colheres dentro das xícaras de café com leite, os despertadores ecoando músicas de outras épocas para acordar as mulheres de rolinhos na cabeça, os gemidos resmungados das crianças que ainda se remexiam na cama e, ao longe, buzinas de ônibus escolares recheados de uniformes azul-escuro-e-cinza e merendeiras abarrotadas de coisas que seriam trocadas na hora do recreio. E, com um pouco mais de atenção, eu conseguia ouvir o discreto movimento ma-te-ma-ti-ca-men-te calculado do ponteiro de segundos do relógio na parede da cozinha: a única coisa fora da inércia branca dos armários, geladeira e fogão. Encostei a palma da mão no vidro liso da janela e, no contorno da minha pele, um vapor invisível desenhou os cinco dedos estendidos. Na ponta do dedo indicador, o sol pálido aparecia entre recortes de nuvens cinza, enquanto seus raios enfraquecidos percorriam o vão entre os demais dedos; no ápice do polegar, uma janela do prédio se abria pela primeira vez no dia, enquanto uma senhora aproximava-se do parapeito para sacudir um tapete no ar. Os ventos vieram prontamente limpar a poeira, jogando-a contra as copas das árvores mais altas. Na ponta do dedo mínimo, quase invisível, a última estrela que persistira desde a madrugada, esquecida pelos olhares, agora voltados para as pedras no passeio e para os relógios digitais encrustados nas calçadas. A estrela esquecida, revelada secretamente sobre a ponta do meu dedo, lutando contra o véu branco das nuvens que giravam mais rápido do que o planeta, do que o ponteiro de segundos no relógio da cozinha; ela respirava, reanimando o próprio brilho que mal se podia ver contra o céu azul claro desvendado entre as manchas nubladas. Lembrei do pedido que se faz a primeira estrela da noite e já arquitetava desejos inatingíveis quando compreendi que aquele não era o dom da última estrela da noite, não da última. Suspeitei que ela ainda permanecia naquela fresta de céu porque, ao contrário de conceder um desejo, ela levaria embora qualquer memória ou cicatriz que não soubesse se desfazer no mundo dos homens, já que para as estrelas a eternidade é um intervalo no escuro. E como num susto diante do espelho, descobri que eu também era o último ser humano que ela veria naquele dia e, logo, também seria responsável pela história que ela deixaria comigo. Para todo o instante, eu e a estrela atrelados um ao outro. Foi quando a ventania soprou mais forte na fresta da janela semi-aberta, jogando as barras da cortina quase acima da cama onde Melissa dormia, que os ventos correram aos pés dos meus ouvidos e sussurraram a memória da qual a estrela se desfazia. Um segredo guardado durante milênios de viagem, ininteligível em palavras, apenas sentido na pele como um frio fino que enovelava os pêlos num movimento ascendente. Abri os olhos contra a força do vento e prometi à estrela a lealdade do mundo dos homens. Ela, então, como numa pequena explosão, espalhou seus pequenos prolongamentos brilhantes, espreguiçando-se como Melissa o fazia na cama. Antes de se extinguir, quando sua luz se tornou apenas um detalhe, ela se curvou e escutou a minha história. E, do parapeito da minha janela, pedi a ela que levasse embora o vestido azul e a imagem de S. numa das últimas noites, ambos resguardados pela luz densa do abajur do canto da sala: a poça de lágrimas brilhando sob a pálpebra, imediatamente antes de se extravasar pelo rosto até atingir os lábios mordidos. O vestido azul recolocado com pudor sobre os joelhos, ensaiando uma ordem tão dissimulada para o caos instalado. O mesmo vestido no qual ficou o meu suor e juízo. O exato vestido azul que mostrava a pele clara dos ombros salpicados de minúsculas pintas desvendadas nas primeiras horas de uma manhã de inverno. O contorno do vestido azul que delineava os meandros da minha mão hesitante entre a surpresa e o desejo. A textura ambígua do tecido interno do pequeno vestido azul deslizando no dorso da minha mão, enquanto na palma a suavidade da pele guiava a descoberta. O vestido azul que, agora, andava por entre todas as outras coisas onde não me encontraria, onde não estaríamos. Roguei à estrela que retirasse de mim aquelas dores, que já eram fisgadas no chakra cardíaco, quando revivesse cada sutil lance dos curtos dedos de S., principalmente quando se esbarravam no meu corpo, na derradeira tentativa de me prenderem, de assinalarem todos os sentimentos para sempre, e que apagasse dos meus dedos, os mesmos que marcaram o vidro da janela e que tateavam o vestido azul no lençol que não foi lavado, a lembrança de S. Implorei para que esses dedos desistissem de reencontrar, dentro de outras, os pontos nos quais S. gemia, a respiração governando o ritmo. Apagar cada lembrança dos olhos de S. fechados enquanto dormia aninhada aos meus travesseiros: as mãos espalmadas uma contra a outra, protegida contra o meu corpo desajeitado, entregue aos pés da cama. Aos pés dela. O vestido azul arrancado do corpo e jogado contra o sofá da sala. Que a pequena estrela matasse cada memória viva e levasse consigo aquela terrível sensação de que, para sempre, o meu mundo andaria entrelaçado nas finas tiras do vestido azul.

Resignada, a pequena estrela cortou o céu nublado num risco quebrado de luz, transformando-se num relâmpago branco que se iluminou por trás das nuvens cinza. A chuva despencou de todos os lugares, lavando as faixadas dos prédios e provocando a abertura de dezenas de guarda-chuvas, de todas as cores, como num desabrochar de flores móveis que corriam pelas calçadas e entravam nos ônibus. Enquanto observava o jardim de sombrinhas, perdi de vista a pequena fresta de céu azul onde a extinta estrela estava. Procurei-a entre as manchas cinza nas nuvens, no recorte entre dois prédios, acima dos outdoors no térreo dos edifícios e entre as copas das árvores no alto dos morros. Não a encontrando, pude sentir, pela primeira vez, o cheiro da chuva molhando o asfalto e com ele, um delicado aperto na nuca, como o avesso de um alívio. O doce cheiro do chá de camomila que Melissa fazia na cozinha invadiu o quarto e me convenceu a postergar um cigarro e algumas lágrimas. Ela veio minutos depois, com duas xícaras de onde se via barbantes de sachê suspensos, e, reclamando qualquer coisa, fechou as duas partes da janela, cortando o fluxo do vento que fazia o quarto respirar. E sem conseguir me mover, tive a exata certeza de que a pequena estrela havia me ouvido.