Friday, July 11, 2008

Canções de guerras & histórias de amor (e vice-versa)


"chegamos ao fim do século
voltamos enfim ao início
quando se anda em círculos
nunca se é bastante rápido"

(Filmes de guerra, canções de amor - Engenheiros do Hawaii)




Como num filme da década de 20, eu fitei-a como se pudesse fotografá-la. Interrompendo o movimento que levava o garfo à boca, ela disse:

- Que foi? – e como se soubesse o que havia atrás dos meus olhos, concluiu, abandonando o talher sobre o guardanapo ao lado do prato – qual é a epifania da vez?

- Não é nada, Ana – devolvi fazendo o lance de mão contrário e tomando, entre os dedos da mão canhota, o garfo que ela há pouco abandonara.

Entretanto, ela sabia que nada era sempre alguma coisa. Afastou a pequena mesa de cima de nossas pernas e virou-se toda em minha direção, com as pernas cruzadas em posição de lótus, deixando-me com um pedaço de filé de frango e de couve-flor espetados no garfo desertado. Aproximei-o dela e, embora fosse convidativo o sorriso que ela esboçava, a boca não se rendeu à oferenda. Alteei as sobrancelhas, desafiando-a a qualquer jogo íntimo de dou-não-dou; abri a boca expansivamente, como num gesto de mímica que faria para dar de comer a uma criança. Ela não desviou o olhar do meu mesmo quando o interpelei com o suculento pedaço de frango.

- Vou cantar a música da Eliana se você não comer... um-dois-e: ... “chega da escola, senta na mesinha eeeeeeee... come toda comidinha”.

Ela riu. Primeiro, as pálpebras resguardaram os olhos que, minutos antes de serem cobertos, pareciam uma piscina de águas negras onde holofotes projetavam o brilho das luzes fluorescentes; a pupila estava indistinguível, camuflada no ébano da íris. Em seguida, as sobrancelhas desenhadas em pêlos bem penteados transversalmente, arquearam-se como se arredondassem os traços da testa e das têmporas. Ainda no mesmo ritmo, mostrou os dentes alvos, num sorriso que ia de gengiva a gengiva, e como se estivesse encabulado, escondeu-se, furtivo, sob os lábios que não eram suficientemente fortes para impedir que a boca se envergasse num sorriso lua-crescente. Ele ainda tentou escondê-lo num movimento retraído, virando o rosto para o lado esquerdo, como num recuo estratégico, à lá russa. Mas, a retirada era apenas um instante de defesa para sentenciar um retorno tardio, um ataque inesperado, quando o sentimento que lhe fizera rir da primeira vez (menos pelo engraçado, mais pela graça) se controlasse numa face mais séria. Antes de abrir os lábios – que mal queriam se desgrudar, devido à umidade que lhe era vista reluzente sobre a pele rósea -, fitou-me de viés, entre os cabelos que haviam escorregado detrás da nuca e se posicionavam, como uma cortina de renda em casa cigana, entre nossos olhares-miras. Como a batalha jamais seria franca, com os olhos forçadamente fechados, caminhou com o queixo no ar, quase perfazendo uma elipse ascendente perfeita, à maneira dos movimentos circulares do canos dos velhos tanques de guerra. Elevou uma das sobrancelhas, numa afronta de rostos, antes de, parcimoniosamente, ir reabrindo as pálpebras e lançando, a anos-luz, os flashes de brilho do seu farol negro.

O garfo desceu, ao lado do prato, rendido sob o guardanapo branco.

- Por que você fica me olhando assim? – e embora houvesse um tom interrogativo, a voz era branda, como se antes de uma pergunta, fosse mesmo a estipulação de uma resposta exata.

- Assim como? – e o tom com que falei era essencialmente uma postergação da resposta que me fora imposta na indagação anterior.

- Assim... assim-assim, ué. Como a gente explica algo que sente? – e o alvo estava marcado sobre o meu peito, sem escapatória.

Franzi o cenho e enruguei os lábios. Como uma bandeira-branca, que sobe, hesitante, ao pequeno monte: mas, não havia hesitação: beijei-a.


Fonte da foto: http://www.otaboanense.com.br/pas_historia/iwo-jima-flag.jpg (batalha do dia 19 de fevereiro de 1945, em Iwo Jima, ilha japonesa)