Thursday, June 19, 2008

O presente maior

Duda nasceu com um quilo e setecentos gramas, um mês e meio antes de ser escorpiana, em meados de setembro, quando a primavera, com suas cores em aquarela, adentrava
canteiros de grandes avenidas e jardins ovais de pequenas praças. Entre um copo de café e outro que eu buscava na pequena bandeja na sala de esperas, eu perambulava pelos corredores da maternidade, andando com as mãos cruzadas atrás do corpo e o pensamento três passos à frente; com a ponta dos dedos da mão direita, girava a aliança no meu anular esquerdo ou estralava os dedos pela enésima vez. As enfermeiras passavam por mim, com um sorriso que já haviam oferecido a tantos outros pais de primeira viagem e diziam alguma coisa inaudível entre si, apontando em minha direção com o dedo polegar escondido pelo corpo, quando estavam prestes a virar num outro corredor ou entrar numa sala; os médicos não desperdiçavam sua cobiçada atenção com o meu desassossego e passavam ainda mais ligeiros pelos corredores, levantando as caudas de seus jalecos ao ar. Entre um gole de café e um leve desconforto estomacal, eu mal podia acreditar que, daquela última porta da maternidade, sairia uma pessoa que já havia mudado tanto a minha vida e que, de repente, reorganizaria todas as minhas previsões de futuro. Por que, quando saísse dali, eu a chamaria de “minha”, ainda que soubesse que quem seria de quem funcionaria da maneira oposta. Fantasiava como seria sua primeira palavra, com qual força confiante seguraria nas minhas mãos para dar os primeiros passos e quais traços levaria de mim, fazendo-os mais belos, mais perfeitos, como se tivessem existido enganados em mim para serem um rascunho da obra impecável que viria nela.

Quando a corpulenta enfermeira ressoou a porta de duas partes no final do corredor, fui obrigado a retesar todos os músculos que, com o barulho, perderam toda a tensão. Minhas mãos ficaram no meio do caminho entre os bolsos, o peito e a boca, pairando esticados no ar, próximos à inércia do coração que já parava de bater para ser arrebatado pela nova vida pela qual passaria a pulsar. Duda veio enrolada num manto verde-de-hospital e quando pude ver seu pequeno rosto ainda vermelho, eu sabia que nada mais apagaria aquela lembrança de mim. Ela não era nada há quase sete meses, a não ser dois traços azuis no exame de gravidez; depois, tornou-se apenas uma certeza num papel de resultados de testes no laboratório. Depois vieram as lágrimas de Lúcia quando estávamos deitados na cama, nas suas variações de humor, imediatamente antes de me engolir com beijos. Quando segurei aquele bebê nos braços, fazendo do meu colo o seu berço, eu mal podia crer que Duda era o resultado daquela noite longa depois de um cinema com Lúcia. O abdômen magro de sua mãe havia crescido rapidamente nos últimos meses e, salvo as complicações que levaram ao nascimento prematuro, obedeceram às expectativas do pré-natal, que consistia em visitas semanais ao obstetra e ao laboratório; quando ela ainda era apenas um contraste no ultra-som, Duda já era a diversão da semana e era com ela que eu terminava a noite, desejando bons sonhos para além das paredes uterinas. Naquele hospital, depois de duas horas seculares de trabalho de parto e cesariana, na ala da maternidade em que eu havia entrado como um homem qualquer, agora saía de lá com uma razão de viver nos braços, alguém para o qual ser o herói.

O primeiro ano passou com a rapidez dos flashes da câmera que tentava capturar as primeiras impressões de Duda no mundo e guardá-las para nossa velhice. Já o segundo ano foi quando fazíamos visitas rotineiras ao pediatra e ao ortopedista, pois as minhas costas aposentaram quando Duda começou a andar e exigia corridas, agachamentos, levantamentos, ajustes de berços e adaptações emborrachadas pela casa inteira. Os três anos seguintes dividiram-se entre as graças e as birras, entre os “para-casas” da pré-escola e os desenhos com giz de cera nas paredes do corredor, entre as primeiras frases sintaticamente completas e os primeiros arranhões nos joelhos.

Logo que completou seis anos, Duda já havia criado seu império no mundo. Abolia as justas roupas cor-de-rosa as quais Lúcia insistia em tentar vesti-la, desfazia as maria-chiquinhas e tranças, obrigando-me a aprender a fazer rabos-de-cavalo dada a insistência da pequena travessa que me puxava pela ponta da gravata antes de sair para o trabalho; dedicava tempo às bonecas apenas para as enfileirar como soldados sobre o encosto do sofá, quando ela iria, com bolas de meias buscadas na minha gaveta, derrubá-las ao chão, como num trincheira de guerra.

No Natal seguinte ao seu sexto aniversário, Duda já havia escravizado mais do que as bonecas: como era a neta única do único filho de meus pais, cada um da família ficava responsável por um presente e, aos pés da árvore de Natal, mais da metade dos embrulhos tinha a estampa de coelhinhos, bonequinhas e palhaçinhos. Minha mãe havia comprado uma colcha tricotada para Lúcia, ainda que desejasse a colcha mais para si mesma do que para a nora. O embrulho era de papel vermelho e, embora estivesse escondido entre os demais presentes de Duda, ele se tornou o alvo fácil da curiosidade teimosa da menina. Ela empurrou os presentes menores para os lados até visualizar toda a dimensão do maior pacote que Papai Noel deixara naquele dezembro. Mamãe até tentou distraí-la, abrindo um dos presentes para Duda, um jogo no qual macacos deveriam ser dependurados numa árvore de plástico até que esta não agüentasse mais e jogasse-os todos ao ar. Mas Duda estava irredutível e já havia abraçado o presente, levando-o para o centro da sala. O papel que embrulhava a colcha voou mais rápido do que voariam aqueles macacos e, em alguns minutos, Duda já havia posicionado as cadeiras da sala de jantar, jogado a colcha por cima dela e criado uma cabana, ou como ela deveria imaginar, um abrigo antimísseis. As bonecas, os jogos, as roupas e todos os outros presentes comprados para Duda foram embora para nossa casa fechados, enquanto dormia, sobre a colcha, a criaturinha que batia quase na minha cintura, exausta e recém chegada de uma guerra que se estendeu até a ceia, pois maior do a imaginação, era a fome de Duda.

Depois de alguns meses sem armistício ou tratado de paz, Duda abandonou a colcha dizendo que “aqueles buracos” não protegiam mais e ela precisava de algo mais forte. Quando a levávamos para as compras da casa, geralmente num sábado de manhã, Duda passeava nas lojas de tecido e dava seu parecer sobre cada pano e me dizia para quais fins ela os usaria. E quase nos obrigou a comprar alguns metros de veludo, pois achava que o material lembrava uma pele de urso e nenhum monstro, alienígena ou ladrão iria invadir o seu forte, se ele parecesse com um gigante urso negro. Enquanto não encontrava a melhor armadura, Duda usava do nosso cobertor de casal como nova alternativa e apurava sua tecnologia bélica. Das toalhas, fez capas que a tornava invisível e lhe permitia se infiltrar incógnita na cozinha a fim roubar biscoitos para comer antes do almoço; pegou embalagens vazias de desodorante e preencheu-as de água, que atirava contra o Bob, o pastor alemão nazista que tentava invadir a sua Paris no fundo do nosso quintal. Duda amarrava as gravatas na armação do ventilador de chão e ligava-o no modo giratório para combater a Hidra de Lerna, que soprava ventos e serpentes na direção da pequena versão miniatura de Hércules.

Às noites, Duda adormecia deitada comigo no sofá, sobre o meu peito, com a TV ligada no canal History Channel, entre os barulhos de tiros das filmagens de guerras antigas e os depoimentos dos veteranos do Vietnã.

Lúcia, dividida entre o sonho descartado de fazer da filha uma boneca e a alegria de presenciar a engenhosidade da pequena comandante, perdeu a postura quando, num dia de reformas em nossa casa, passou pelo corredor do andar de cima e viu, pregados em cada uma das portas, seus absorventes, nos quais Duda havia fincado alguns brincos e escrito embaixo deles, com pincel vermelho, alguns números, como num projeto de bomba. Do escritório, no andar de baixo, ouvi os gritos de constrangimento de Lúcia que berravam por Duda. Até aquele momento eu não havia entendido porque a pequena havia pedido o antigo controle de alarme do carro que, embora não funcionasse, conseguia acender uma pequena luz vermelha na ponta. Quando Lúcia encontrou Duda sentada à minha frente, com as perninhas cruzadas sobre o sofá verde, a menina nem se moveu. Deixou que a mãe a puxasse pelas mãos e me chamasse para ver a “gracinha” que a “minha filha” havia feito. Retirando os absorventes das portas e catando os brincos que caiam no chão, Lúcia vociferava contra o comportamento de Duda, enquanto a menina, de costas para a mãe, me olhava com um sorriso carinhosamente vitorioso nos lábios, dividindo seu triunfo comigo, e repetidas vezes apertava, sobre o ombro, os botões do alarme do carro na direção das bombas, como se ela as tivesse acionando. Quando levou um tapa amortecido no bumbum, nem ao menos mudou a expressão: apenas me devolveu o pequeno aparelhinho e saiu pulando em ritmo de trote as escadas abaixo.

Quando Duda já tinha sete anos e algumas cicatrizes pelas pernas, houve um dia em que Lúcia e eu fomos chamados pela direção do colégio no qual a havíamos matriculado para a primeira série. A diretora - uma senhora que, embora fosse nova, já nutria tiques e penteados de velha – colocou sobre a sua mesa algumas das maquiagens de Lúcia, dizendo que esse tipo de material não era aceitável na escola, ainda mais para garotinhas da idade de Maria Eduarda. Nos olhos de minha esposa, enquanto a diretora passava um sermão sobre controle e organização dos materiais, pude ver brasas de esperanças que explodiam para fora de suas órbitas, como se Duda tivesse resgatado uma alma vaidosa como desejaria sua mãe, a qual mal podia conter um sorriso desavergonhado de sucesso. Sentado na cadeira estofada da diretoria da escola, cruzei os braços sobre o peito e duvidei dos propósitos do roubo de maquiagens que Duda havia feito. Sobre a mesa, havia lápis de olho, batons, rímel e um estojo cheio de cores para pintar as pálpebras. Com num barulho inesperado de tiro, lembrei de um documentário que havíamos assistido sobre índios e suas táticas de guerra, e ficou claro que a Duda ainda era a mesma comandante de guerras minúsculas. Enquanto andávamos pelo pátio da escola, Lúcia pediu os telefones das mães das outras meninas para se desculpar pelo comportamento de Duda, mas o olhar de soslaio da diretora indicou que a situação no front era ainda muito mais delicada. Quando entramos na sala de aula, as meninas estavam com os rostos limpos, e concentravam-se nas pequenas mesas da frente da sala, postadas elegantemente à frente de suas merendeiras cor-de-rosa. Ao fundo, parte dos meninos estava com os rostos pintados com círculos de batom nas bochechas, traços horizontais e verticais sobre a testa, além de terem buscado folhas de ameixeira e colocado-as com fita adesiva na testa, numa representação das penas que os índios usavam; a outra parte dos meninos havia desenhado com rímel bigodes, barbichas e costeletas. No silêncio constrangido da sala, Duda estava de pé ao lado da mesa da professora, ainda segurando o lápis-de-olho nas mãos. Como castigo, Lúcia a proibiu de assistir à televisão durante uma semana, embora tenha mantido, durante bons anos, as maquiagens ainda ao alcance da menina.

Sunday, June 15, 2008

Calendário Blues


"Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela"
(Chico Buarque - Tempo e Artista)

Dia 26, quarta-feira

O aterrorizante de começar a escrever no meio da semana é a idéia assustadora da minha solidão. Se fosse domingo e eu passeasse pelas alamedas do parque em pleno centro da cidade, ouvindo a gritaria da meninada que nem sabe que dia da semana é hoje, ou se fosse sábado e eu encarasse um cinema, chorando nas últimas poltronas do anfiteatro vivo em mofo, ou se fosse amanhã, seria mais fácil. Às quartas eu sempre me faço esquecer de buscar as roupas na lavanderia, exatamente para evitar as conversas de competição entre as mulheres que ficam sentadas nas cadeiras de plástico quebradas, observando a roupa girar incessantemente nas máquinas, enquanto seus filhos correm entre as fileiras das secadoras. Às quartas, eu até me fantasio de gente e recuso com elegância os convites para ir até um bar. Por isso, começar a escrever no meio da semana requer tanta intensidade, como se eu tivesse a obrigação de me purificar no que escrevo. Não vou escrever nada, então. Amanhã, depois de buscar as roupas, quem sabe?

Dia 28, sexta-feira

“Tenho um sorriso bobo, parecido com soluço”.

Escrevi isso, em letras cursivas, enquanto conversava com Otávio no telefone. Ele jurou que ninguém mais ouvia Legião Urbana, mas eu não acredito (ele só diz isso porque ele próprio ouve Renato Russo e não quer que mais ninguém ouça e isso passe a ser algo intitulado coisas-que-só-o-Otávio-faz, como se fossem necessários hábitos estranhos para se lembrar dele). Desenhei o corpo de Otávio com traços fortes de azul esferográfico no canto do catálogo e ele ficou tão bonito que coloquei uma legenda logo embaixo: tua tristeza é tão exata. Otávio é, agora, um desenho de palitinhos perto do telefone da pizzaria. Ele desligou quando o interfone tocou e ele disse que era. Fui fazer meu café instantâneo no microondas, depois de ter lavado o meu dedo sujo de tinta azul do corpo de Otávio, habitante do meu catálogo de endereços.

Dia 29, sábado(r) – adendo entre parênteses fatto a mano

Primeiro, um prédio tão alto que, contra o sol, ninguém poderia ver o final dele no céu. Lembrei-me da historia infantil que ninguém nunca leu para mim: João e o pé de feijão. Uma mulher passou, à frente do prédio, jogando os feijões para cima e pegando-os no ar, enquanto gritava fórmulas químicas. Segundo: e de repente, a porta aberta e, lá dentro, vasos de flores brancas nas quinas do salão, que afunilava-se até uma escada em espiral com corrimãos de marfim. No patamar mais alto da escada – uma espécie de chão de vidro logo acima da minha cabeça -, o barbudo Brahms tocando Lulluby e pássaros amarelos que vinham ciscar as notas e levavam-nas embora na ponta do bico, quando não as engoliam e cantavam no mesmo tom da nota. E Brahms cada vez mais irritado com as aves que desafiavam a melodia: as bochechas quase escondidas nas barbas brancas avolumadas (mas, isso não era o Papai Noel?), os dedos que corriam nervosos sobre o branco-preto-branco-preto-preto do piano e que, súbito, abandonavam a fosforescência de Lulluby e invadiam, como soldados soviéticos em campos alemães, Pour Elise na parte em que o piano toca dolce, enxotando claves e sustenidos. Algumas notas caíram no chão e vieram quicando, degrau por degrau, até os meus pés; em cada choque de suas estruturas negras sobre o assoalho de granito, elas repercutiam o tom do qual haviam fugido. Amontoavam-se por todos os lados. Pisei sobre algumas que, agonizantes, desafinaram. O velho pianista perdia, um a um, todos os fios de cabelo até, por fim, perder a audição. Acordei quando consegui distinguir o timbre de um piano do barulho eletrônico do meu celular.

Dia 30, domingo

Cida,
Quase comprei o CD da Loreena McKnight na loja do shopping onde almocei hoje e juro que se tivesse comprado, eu passaria na sua casa para o ouvirmos, bebendo essa cerveja horrível que você anda comprando só por causa do Beto. Dei o bolo em mamãe e não fui ao almoço terrorista na casa da tia Zélia (você sabe como é o caos ter de ouvir os comentários das primas mais velhas acerca dos métodos de educação dos seus filhos que, aliás, andam brincando horas a fio dentro dos armários do porão). A gente também brincava dentro dos carros do vovô, você ainda se lembra? Você era a co-piloto das nossas viagens intergalácticas. Sinto falta do cheiro dos bancos de couro do Volkswagen nas tardes de verão dentro da garagem. Te ligo de novo assim que der notícias melhores de mim. Beijos frescos com sabor de jabuticaba roubada no pé.

Dia 1, segunda-feira

Ela deveria ter trinta anos: mente de quarenta, mas corpo de vinte, e cairia exatamente na média aritmética. Um carro do ano na garagem do prédio, dentro do qual levaria três portas-CD divididos em música clássica, MPB e jazz. Mas, jazz não é clássico? Música erudita, então. Mas, ela não queria a erudição: apenas perfazia o estilo misterioso intocável para atrair e se manter a salvo das tragédias. Contudo, ela teria três portas-CD e gostaria de Mozart. No corredor de entrada do apartamento que ela financiaria com o amigo-gerente-de-banco, haveria, sobre a mesa encostada à parede, fotografias com os amigos e os sobrinhos que tanto a amariam; no centro da mesa retangular, em meio às demais fotos, ela e o Amor da Sua Vida apoiados no parapeito de um apartamento que eles teriam alugado para passar as férias. No verso da foto e escondida pelo porta-retrato, a letra de imprensa com a caligrafia do Amor da S. V., dizendo segredos codificados em expressões íntimas e apelidos pseudoafetivos que ninguém, além deles dois, saberia traduzir em sorrisos crônicos e noite acordadas: uma data no canto da foto para eles driblarem os anos. O telefone dela jamais ficaria sorumbático por muito tempo e muito menos ela teria de esperar uma ligação ou ser obrigada a fazê-la. Seria amada com tanta admiração que, por efeito de eco, ela também aprenderia a se amar também. Ela: a imagem que deixaria de ser uma esperança no reflexo de relance do vidro da janela do ônibus que corre dentro da noite, : o passatempo de ninar entre o desligar da televisão e o sono, : a lembrança de todos os sonhos ambiciosos que, agora, delimitam o final de uma segunda-feira sem fotos no corredor.

Dia 2, terça-feira

Quase arranquei a página de ontem, mas descobri que se a arrancasse, acabaria perdendo o dia de hoje. Até pensei em passar corretivo sobre as palavras, mas para escrever nestas linhas que agora escrevo, seria bem pior: a massa que o corretivo criaria, mesmo do outro lado da folha, amoleceria a folha de papel e a solidez necessária para apoiar a ponta da caneta teria acabado. Por hoje, eu não vou arrancar o ontem.

Dia 4, quinta-feira

Gabriela teria nascido há três anos, com sua boca de boneca de porcelana pintada à mão e eu a teria carregado nos braços e a beijado com a alma. Ela iria rabiscar as paredes da minha sala com seu lápis creon, assistir ao Cartoon Network nos horários dos meus telejornais e deixaria recados sinceros nas páginas dessa agenda, desenhando-nos de mãos dadas no espaço entre montanhas verdes e árvores cheias de maçãs vermelhas, num papel A4 da minha impressora; uma casinha de cuja chaminé sairia uma fumaça branca, como uma neblina, e as nuvens que seriam azuis, pela preguiça de colorir o céu. Gabriela andaria com sua jardineira jeans sempre suja de terra do parquinho, para o qual eu iria sempre depois do almoço para assisti-la brincar a tarde inteira de um domingo com outras crianças, entre as quais ela seria a líder. Quando balançasse nas gangorras, ela gritaria que estava a rumo do Sol e me chamaria dizendo “olha como eu vôo alto, olha!” e, na volta para casa, me faria perguntas constrangedoras sobre o sentido da vida. Gabi nasceria tão pequena que eu cuidaria dela como se fosse um pedaço apartado de mim e, tão frágil, a levaria embrulhada num manto azul claro no conforto do meu colo. Eu mal respiraria para não acorda-la. E se pudesse, ela não cresceria jamais e ficaria apenas um pouco mais alta do que o meu joelho. E se eu pudesse, Gabriela não seria somente uma opção de nome ou um remorso das decisões que eu não tomei a tempo de ser feliz.

Dia 3, quarta-feira

Demorei um dia para chegar até hoje.
Lá fora, agora: o mundo todo é uma opção.
Estou a milhas e feridas de qualquer intuição.
E juro que teria terminado com salvação,
Mas, eu não faço poesia.

Dia 5, sexta-feira

Como tudo terminou tragicamente, era possível que estivéssemos próximos da felicidade. Ela tinha apagado a única vela do pequeno muffin que havíamos comprado na primeira loja de conveniência aberta. Ou talvez a felicidade fosse tão surreal e palpável, que apenas o desastre nos livraria de nos vermos encurralados pela possibilidade de ser completamente feliz. No meio da praça, sob o telhado do coreto, enegrecido de lodo das chuvas dos últimos verões, ela espremeu os olhos e, com delicada fragilidade, soprou a chama que demorara a se firmar com os ventos dos carros que passavam correndo pela rua. Seu fôlego nascia morno e apenas amortecia a chama, como se ela pudesse prolongar o momento vazio para preenchê-lo com sua ansiedade. O pavio ficava rubro em brasa, mas sempre se reacendia, oferecendo-lhe um novo pedido. Ela fez o primeiro desejo, o qual não pode contar a ninguém. A chama reacendeu logo depois e suas pupilas contraíram abruptamente, deixando à mostra o verde rajado da sua íris. Ela novamente fez um pedido cujo brilho fez fulguras nos seus olhos que, dessa vez, estavam atentos, talvez desenhando o desejo com uma força real de certeza. Soprou a vela como se aquele pedido fosse o último, mas a teimosia do fogo estalou o pavio e gerou uma nova luz amarela. Ela apoiou uma mão sobre o meu ombro e sussurrou no meu ouvido, tampando a boca com a outra mão: “desejei que você também pudesse fazer um pedido que se torne realidade”. Mais uma vez, ela fechou os olhos e, com os lábios levemente abertos, não assoprou, deixando que o meu suspiro escondido, nascido logo atrás da nuca dela, apagasse a chama que, dessa vez, cessou sem titubear. Eu desejei que ela me desejasse mais do que um pedido. Ninguém nos ensinou que a felicidade poderia acabar sendo uma estranha.


Dia 06, sábado saturday

I woke up later than the usual and I had to be strong to keep my eyes open through the day. I pull the blankets over my head to make the daylight go away for a couple of hours, untill it was almost night again and the bad became unbearable. All the memories of last night seemed to pick on me and didn’t let me go to bed before five am. He talked to everybody before coming to me, he wore the same old perfume which he keeps safe in his underwear’s drawer, he was all the reasons for not going there again. From my pillow, I’ve felt the stars going down by the morning and coming back when the sky was invaded by the blue darkness. How many glasses of wine untill the stupid question? How many scars ‘till my soul doesn’t feel the pain? I’ve become all suffer I couldn’t stand in somebody else, even though I could have done so much more. So, this is all about relationships? Is it about being aware of all the chances of doing the right thing in a wrong way? He was supposed to be one night stand, not a feeling that could last this long.

P.S.: I should really stop drinking and prevent myself of thoses weird feelings during the hang over.

Dia 07, (domingo) sonntag

Todos os domingos são iguais; a única diferença são quais as promessas que se cumprirão na segunda-feira.


Dia 08, segunda-feira

Cortei o cabelo na hora do almoço: os três dedos que eu pedi foram embora dentro do palmo inteiro da cabeleireira. Quando era pequena, sentia gastura do arranhar da tesoura cortando as mexas do meu cabelo molhado e, durante todo o corte, permanecia com os dentes trincados e os olhos apertados, contando nos dedos os segundos que me separavam do fim daquela penúria. Em meios às vozes dos cantores sertanejos que saiam das caixas de som colocadas nas quinas das paredes, dentro da tontura do puxar e pentear dos meus cabelos, eu conseguia me projetar à beira de uma lagoa de águas verdes escuras, em cujo espelho d’água o sol ofegante atiraria os seus últimos raios alaranjados. A grama molhada de sereno, que escorria em pequenas gotas frias nas folhas, deixando o cheiro de terra molhada na palma da minha mão. Uma garça à margem da lagoa, com suas longas e esguias pernas submergidas na água esverdeada, atenta às pequenas oscilações da água em círculos concêntricos; a ave esfomeada que lançava sua cabeça aguda dentro da água para buscar as pequenas piabas que se alimentavam do lodo do fundo da lagoa. A música sertaneja soava distante, como um realejo a léguas, que tocava no alto de uma torre de pedra de um castelo medieval e cujo som vinha veloz sobre a floresta para me encontrar. Quando a cabeleireira ligava o secador e soprava o ar mecânico na minha face, eu quase podia transformá-lo nas brisas frescas que evaporavam do lago à minha frente e jogavam meus cabelos castanhos para frente dos meus olhos. O barulho do motor do secador era o choque dos ventos contra a estabilidade verde das folhas das árvores ao meu redor: um ipê amarelo que cortejava um ipê roxo, algumas jabuticabeiras enegrecidas pelas frutinhas pretas que lhe agarravam os galhos, uma mangueira que se entortava com o peso das mangas amarelíssimas prestes a se desmancharem no chão, um eucalipto intruso e solitário que se destacava sobre as copas de todas as outras árvores, como um macho-alfa. Antes mesmo que meus olhos se abrissem e encarassem meu próprio rosto no espelho do salão de beleza, eu me levantava do gramado, desamarrava meu unicórnio branco de uma das estacas de pau de um cais à beira da lagoa e, montando-o, galopava entre os troncos das árvores desmaiadas no chão, enquanto as patas do meu animal robusto esmagavam as folhas velhas e amarronzadas veladas no chão. Hoje, eu também projetei as mesmas árvores, o mesmo cavalo, o mesmo pequeno cais de madeira que invadia a lagoa; a música do salão era um jazz, então o meu alazão de um chifre só empinava-se e quase me derrubava ao chão. Sem cela, sem estribo: apenas eu e ele, selvagens numa selva familiar. Eu e meu cavalo de cinzas. A cabeleireira cortou mais do que eu queria, mas foi bom perceber que tudo o que é novo também carrega boas lembranças do velho.

Dia 09, terça-feira

Juro que tentei não voltar atrás, não ligar, não mandar mensagens, não enviar e-mail com trechos das músicas que ouvíamos enquanto ela dirigia, não fazer cara ressentida quando ela aparecia nos lugares, apenas para que ela fosse tocada pela minha tristeza, que era só dela. Juro que reaprendi a andar nas mesmas ruas, olhando os novos outdoors sem sentir falta daqueles antigos que antes apreciávamos da sacada do meu apartamento, quando ela cabia minuciosamente nos meus braços. Os restos dos vinhos guardados na geladeira foram embora com o primeiro caminhão de lixo na manhã seguinte; a escova de dentes coloquei no fogo e, quando ela virou uma bola de plástico no meio da panela, joguei-a descarga abaixo. O xampu e o condicionador que ela demorava horas para escolher, o pacote de absorvente usado pela metade, os batons vermelhos de embalagem borrada e todas as roupas que se misturavam com as minhas nos cabides e nas gavetas, no balaio de roupas sujas e nos varais: todos foram encaixotados e juro que ainda pego aquelas caixas da despensa e dispenso-as. Juro que troquei os móveis de lugar, pintei uma parede de vermelho, comprei novos quadros e refiz a moldura dos velhos. Matei as violetas dela, colocando-as no escuro do quarto de empregada sem um pingo d’água, e comprei samambaias verdes com pequenos brotos nascidos das beiradas do xaxim, às quais eu dedicava quinze minutos ainda sonolentos da minha manhã, banhando-as com água num pequeno regador; limpei com álcool as marcas de batom em forma de beijo que ela havia deixado no espelho do armário, rasguei as fotos das férias passadas, vendi os livros e os CDs que ela deixava jogados sobre o tapete, quando passava horas e taças de vermout espichada sobre o tapete persa, refazendo a estampa com a ponta dos dedos, ouvindo as coleções dos anos 80 e 90 e grifando frases dos livros para não as esquecer. Queimei os ingressos que guardava de lembrança das nossas idas aos teatros e festivais de dança, dos quais ela sempre saia sentindo uma atriz ou dançarina interrompida pela vida. Tentei trocar o aromatizador do carro, mas ficou impossível arrancar aquele perfume de lavanda do estofado, então troquei o carro. Gastei todas as economias que mantinha para o dia em que nos mudássemos para a mesma casa, que, aliás, já havíamos visitado várias vezes: de dois andares no melhor bairro da cidade, no final de uma pequena avenida, com janelas enormes de madeira boa e envernizada, uma sacada com uma rede tricotada comprada muito provavelmente numa praia nordestina, um jardim bem cuidado e guardado por anões de nariz comprido e vermelho, uma joaninha que segurava uma placa onde se lia “aqui mora gente feliz” e uma tartaruga que desejava boas-vindas. Nas noites de verão, depois de comprar um sorvete de flocos para mim e um de abacaxi para ela, ficávamos dentro do carro, com ar condicionado ligado, do outro lado da rua, sugerindo reformas e melhorias na casa que já chamávamos de “nossa”. Também parei de tomar sorvetes e deletei dos “favoritos” do Internet Explorer os sites das imobiliárias. Dia 10, quarta feira. Troquei o papel de parede e mudei o descanso de tela para uma tela negra na qual uma bola colorida muda de forma quando toca as margens da tela. Quando a luz do quarto ficava apagada e apenas a tela do computador coloria as paredes brancas, e eu ali, com a cabeça afundada no travesseiro pelos soníferos e analgésicos, olhava aquela bola que ora era quadrado, ora era estrela, tornava a ser bola, virava um asterisco tridimensional, transfigurava-se numa forma indefinível, naquelas noites, eu juro que pensava que eu era aquela bola colorida infreável e desordenada, sem saber exatamente o que é, presa nas paredes de um quarto escuro. Se por um minuto, eu a queria de volta e torcia para que, a qualquer momento, eu ouvisse o barulho dos copos sendo retirados dos armários e a voz dela que me perguntaria “chá ou café?”, em outros minutos, eu desejava uma tragédia, um acidente, uma morte de algum ente querido, para que ela sofresse e me procurasse, no meio da madrugada, desejando a minha voz apaziguadora e um monólogo no qual eu diria, com detalhes, o que ela estivesse sentindo e descrevesse, como um narrador, todos os dias intermináveis até aquele telefonema redentor; minutos outros em que eu me esquecia do quarto, dela, da bola, da escuridão e vivia suspenso, como se o mundo inteiro fosse o meu colchão. Jurei que jamais comeria o sanduíche que inventamos juntos, depois de uma noite intensa de transa em todas as camas, sofás e paredes do apartamento, e descobri novos condimentos, molhos e queijos, os quais combinava com diversos tipos de pães e, no semi-silêncio da cozinha, quando só se podia ouvir o motor da geladeira, eu recitava em voz alta os ingredientes e as técnicas de aquecimento e sobreposição, como se ela estivesse escorada na porta, os braços cruzados sobre o peito e o sorriso mudo que convidaria as covinhas à bochecha. Juro-juro-juro que troquei o rádio-relógio dos números vermelhos, pois ele era a única coisa que separava o meu despertar e encontrar os olhos dela, embora fechados, no conforto de um sono que o meu corpo velava. Por que, embora eu trabalhasse só às oito, ela tinha de acordar às seis e meia, e eu colocava o despertador do meu lado da cama para, às seis e quinze, acordá-la e cortejá-la durante quinze minutos; para que fosse eu o despertador dela e a acordasse com um beijo morno sobre as pálpebras e fosse eu também a primeira impressão do dia dela, mesmo tendo na boca aquele gosto amargo de noite dormida, pois até os meus defeitos também eram para ela, para que me ironizasse e se sentisse tão dentro do que há de mais indefeso em mim. Juro ainda que, na semana seguinte após ela ter ido embora, mesmo com todo o meu escândalo, os meus gritos, as minhas lágrimas, os murros nas portas, os copos de vinho tomados num gole só, as desculpas arranjadas de última hora, os motivos para ela ficar, as promessas de amor sublime, os recados soluçados na secretária eletrônica, embora todo o meu desespero, ainda houve paciência para reler uma a uma as mensagens no celular, conferir a data e o horário, e apagá-las, uma-por-uma, como quem destrói uma flor com pétalas de mal-me-quer. Dia 11, quinta-feira. Juro, em nome de todos os santos, que abri a minha casa para todas as festas e meu coração para todas as mulheres, e nos espaços vagos da ausência que ela deixava cada vez mais insuportável, tentei colocar todas as aventuras como provas de que eu não precisava dessa dor; provei corpos mais bem desenhados, bocas mais macias que me davam beijos mais ávidos e mulheres loucamente intensas que deixavam meu corpo no limiar das possibilidades prazerosas, todos os desenredos que sempre terminavam numa madrugada, dentro do carro novo, parado num semáforo em sinal verde, com lágrimas que escorriam até um sorriso, enquanto pensava com a dor e agressividade de uma fera ferida: “vê como elas são melhores como elas fodem melhor como eu sou bem melhor sem você eu não preciso não preciso não preciso”; experimentei mordidas, chupões, arranhões e posições e juro que, até a última gota de dor física, fiz dela o prazer de estar com outra, como se fosse uma traição. Juro-três-vezes que eu não sabia que a única traição era a minha própria. Passei noites em bares com os amigos e bebi uma garrafa inteira de vodka para conseguir falar todos os nossos segredos, todos os nossos despudores, todas as suas submissões e fantasias e tudo aquilo que eu achasse que pudesse machucá-la e que fosse sangrá-la, como sangrava em mim saber que talvez ela nem se lembrasse dessas histórias, as quais eu precisava beber para revelar. Juro que a maioria dessas juras foram feitas logo após ela ter fechado a porta do elevador, enquanto eu ficava do lado de fora com aquela imagem de imediatamente antes das grades do elevador entrarem na frente; os olhos baixos que eu já não sei mais se choravam, os cabelos presos num rabo-de-cavalo no alto da cabeça, os brincos de ouro que eu havia dado no Natal passado; e juro que todas essas promessas desesperadas foram quebradas quando eu a via passar na rua, sempre no mesmo assento do ônibus, na esquina da mesma avenida na qual eu ficava sempre no mesmo horário, para vê-la passar, como se, de repente, o acaso nos fizesse colidir e ela redescobrisse o amor sobre-humano que eu tinha guardado para os anos que viriam. Juro que, num dia de blecaute, sem a bola-metamorfose do protetor de tela para me consolar, passei algumas horas vislumbrando a metade da cidade na completa escuridão e indaguei em qual lado da cidade ela estaria e, se estivesse no lado iluminado, se sabia que metade da cidade estava sem luz, confinando as pessoas a conviverem umas com as outras e obrigando-as a tatearem as paredes e os móveis para fazer o velho caminho dentro das conhecidas casas; assisti aos carros que iluminavam as pessoas que saiam à rua e franziam a testa com a intensidade da luz dos faróis; juro que olhei para fora da janela e, naquele breu, pular não pareceu tão assustador; talvez ninguém poderia ver e só soubessem disso quando a luz tivesse voltado, ou pela manhã com os primeiros raios de sol, ou alguém que tenha andado e pisado sobre o meu corpo, levando a sola do sapato suja do meu sangue. Juro que a saudade era tão impaciente que a idéia de revê-la no meu velório me fez sorrir e, imaginei o que ela faria quando soubesse como morri, de onde pulei, onde caí, com que roupa estava; pensei que, mentalmente, redesenharia meu pescoço e ficaria assustada em não conseguir lembrar dos detalhes; ela visitaria meu apartamento, notaria as mudanças, a parede vermelha no meio da sala, os novos condimentos e molhos, a cama desarrumada, o novo rádio-relógio de números verdes e lembraria de tudo um dia como foi: e foi dela : e saberia que, mais do que um corpo, voou pela janela um sonho abortado de felicidade e sorrisos crônicos. Mas, juro que os postes se reacenderam a tempo de me constranger e flagrar as quatro lágrimas que caíram, alternadamente, de cada olho. Juro que jurei quase tudo em vão, pois a primeira jura que fiz logo depois do elevador partir foi de que não a amaria mais e de que ela seria, então, apenas uma comparação, uma história para me sentir envelhecendo. Dia 12, sexta-feira. Até mesmo jurei que jamais gastaria canetas e lápis escrevendo frases para me remediar da ausência dela, quando tudo o que eu realmente peço, no verso de toda a folha, é que essa dor vá embora logo, como as luzes põe fim a um blecaute e recolocam tudo no mesmo lugar.

Dia 13, sábado

Hoje seria uma página em branco, se eu não tivesse escrito que hoje seria uma página em branco se eu não tivesse escrito que hoje...


Domingo 14, dia

- Beto?
- Eu...
- Se você pudesse fazer uma pergunta a Deus...
- ...
- ... e soubesse que Ele iria lhe responder a mais absoluta verdade, o que você perguntaria?
- Se ele estivesse na minha frente agora?
- Agora ou depois, não importa.
- Perguntaria assim: Papai do céu...
- Pára de brincar! É sério...
- ... existe um fim?
- ...
- E você? O que você perguntaria?
- Perguntaria se é verdade aquilo que você me disse que perguntou.
- Aiai (...). Você quer sair para pegar um cinema?
- Eu tenho que responder a verdade?

Noite, 14 domingo

Chove. Chove muito lá fora e eu perdi a minha sandália na enxurrada, quando saímos do cinema. Ele correu, pisou nas poças de água e voltou com o corpo molhado e sem a sandália. Sorria, sorria como uma criança que brinca na chuva. E eu sorri porque o amava sorrindo desse jeito moreno e sereno. “Um táxi, um ônibus?”. “Uma passagem de avião”, e ele me deu a mão no meio da avenida. No meio do caminho, sob a sombra esburacada de uma gameleira que filtrava a luz do poste, ele me colocou contra a parede de uma casa antiga e pude sentir o hálito do café recém tomado; sei que ele sentiu o aroma do chiclete de hortelã que eu mascava. No meio da sala da casa dele, a barba por fazer que ele havia deixado na pressa de sair, roçou o meu umbigo e dei uma risada escandalosa que nos levou a um acesso de risos... que, súbito, parou quando eu o segurei pelos punhos e, com meu corpo, aprisionei-o contra o chão. E eu que nunca pensei que café com hortelã pudesse ser uma boa pedida. Vou desligar o abajur antes que ele acorde e, como amanhã é uma folha avulsa, vou arrancá-la, dando para ele também o meu depois-de-amanhã. Da folha, farei um recado breve no qual borrifarei o meu perfume, para que ele se lembre das minhas palavras como lembraria do meu corpo.

Dia 17, quarta-feira

Por hoje, eu não recusei o convite do pessoal do trabalho e vou sair fantasiada de mim mesma. E, amanhã, se der, eu busco as roupas, eu telefono, sonho histórias psicodélicas, escrevo cartas, desenho meu futuro, brinco com o tempo, invento nomes de filhos que nunca virão, faço poesia, dedilho lembranças, get drunk, faço etiquetas abstratas com máximas chinfrins, relembro hábitos, faço juras de desamor, desafio o infinito, construo diálogos que deveriam ter existido, intimido o tempo e, se der tempo, eu escrevo.