Wednesday, April 16, 2008

A noite

"Sunrise, sunrise
Looks like morning in your eyes
But the clock's held 9:15 for hours
Sunrise, sunrise
Couldn't tempt us if it tried
'Cause the afternoon's already come and gone"

(Norah Jones - Sunrise)


O hotel ficava a três quadras da boate e elas vieram contando os postes: treze no total; no último, compartilharam o lance de olhar sobre uma coruja empoleirada sobre os fios que uniam dois deles: sete fios paralelos. Antes de dar seu grito gutural à noite, a ave girou, em alguns graus discretos, sua cabeça de olhos esbugalhados na direção de onde vinham aqueles retumbares de salto-alto contra o chão de paralelepípedos, mas não as pode ver contornar a esquina que dava dentro da ruela do hotel: a noite tão escura e aquelas silhuetas tão imprecisas, extensões do negro de outras ruas e sombras borradas. A noite parecia ter se fixado entre aquelas duas calçadas da ruela tão estreita, que dava impressões de que os prédios estavam tortos, prestes a desabar sobre os pedestres. Mas, ninguém transitava ali naquelas horas ermas. Apenas elas duas tomavam aquela direção imprecisa de pedras lascadas entre os edifícios adormecidos – um táxi passou cantando pneus na rua recém abandonada; os botões da camisa de uma delas abertos até a linha alba entre os seus seios e os cabelos, da outra, presos pelo próprio cabelo num coque no limiar de sua sustentação: ambas entretidas com o pequeno soluço embriagado de coragem que as levavam até o hotel.

Foram felinas em sua entrada à recepção. Não desviaram o olhar da decoração e apenas Débora se retocou no espelho de dentro do elevador: viu não só o batom descolorido, mas, mordendo o lábio inferior, viu também bordas de um rosa violentado ao redor da boca. Moveu o rosto, mas encontrou apenas o reflexo espelhado dos cabelos anelados da outra, se desembaraçando, castanhos, pelas costas até quase a cintura. Esboçava um sorriso para seu próprio reflexo, quando o elevador deu sinal de que parava no andar certo. Laura segurou a porta com a palma da mão, dando passagem a outra que, antes de sair, retirou os sapatos com as pontas dos pés. Quando Débora abandonou o elevador, a outra pode, então, olhá-la por trás: a nuca tão desprevenida e a coluna que se sulcava a lombar, separando os dois hemisférios do corpo.

Laura veio brincando com o chaveiro do hotel, rodando-o entre os dedos. Parou a três passos da fechadura; ergueu o braço no ar, ao lado do corpo, segurando as chaves com o mínimo de tensão necessária. Débora ainda se demorou no caminhar, alongando todas as falanges cansadas dos pés; uma das mãos adiantou o corpo e cobriu a cintura de Laura, enquanto a outra se encarregava de cuidar das chaves oferecidas. Deixou que seu lado esquerdo se escorregasse, como num esbarrão delicadamente embriagado, no lado direito da antiga dona das chaves e, como nos movimentos de entrada no hotel, foi parcimoniosa com a abertura da porta. Toda a pressa ficara restrita aos olhos e a alguns movimentos involuntários das bocas, ainda distantes. Débora recostou-se à parede justaposta à porta, com as mãos atrás do corpo, servindo de apoio. Laura começara uma caminhada pausada até a outra, já erguendo as mãos para apoiá-las sobre a parede ao redor do rosto de Débora. Os narizes se cumprimentaram, cordialmente, durante um leve subir do rosto de uma, como se estivesse capturando uma essência - um perfume de vida e de desejo - que ficava retida ali, nas vizinhanças da boca. Chaves no apartamento do fim do corredor as sobressaltaram e risadinhas de quem escapa, com triunfo e por um triz, coloriram, durante alguns momentos, a ante-sala do apartamento na penumbra das luzes de letreiros lá fora, até todo riso se esvaziar, em ambos os rostos acuados, e ficar encabulado com a presença do olhar da outra que desafiava a falta de luz.

Laura acendeu as luzes na sua caminhada até o centro do quarto: a mão apenas deslizou para baixo sobre o interruptor na parede clara que dividia os antros. A cama ficava num patamar acima, mais ao fundo do apartamento, rodeada por paredes de janelas que iam do teto até o rodapé, escondidas por pesadas cortinas de pano. Débora seguiu os passos de Laura, pisando sobre as impressões que os sapatos da outra haviam causado ao carpete branco de pelúcia. Apenas algumas lâmpadas laterais, duas ou três, se acenderam sobre um pequeno balcão de madeira encostado à parede da direita, para o qual Laura agora se encaminhava: o rosto apontado para as mãos à frente do corpo. O verniz do móvel refletia o amarelo pálido das luzes e, embora Débora tenha pensado que a outra fosse servir-lhes uma taça do vinho guardado numa garrafa sobre o balcão, Laura buscou um isqueiro prateado, guardando-o no bolso; apontou um stereo na outra parede, para que a convidada pudesse escolher um ritmo. Débora apenas apertou o botão sob a pequena luz vermelha de stand-by e a voz de Norah Jones voou, cálida, sobre os ambientes.

Ela ficara ali, presa nas teclas do piano tocado tão distante e tão frio, como se estivesse num realejo lá dentro do aparelho, lamentando por aqueles que não o pudessem ouvir; o tempo que Débora perdera na música ficou registrado no visor eletrônico azulado, poucos minutos mas longos o suficiente para que um som concomitante tomasse lugar: o barulho de água caindo sobre água inquieta, numa banheira bem mais próxima do que aquele realejo. Débora caminhou na direção daquele som e, à porta do banheiro, cruzou com Laura que, agora sem sapatos, movia-se silenciosa para dentro do quarto. Sorriram-se. A primeira adentrava o banheiro tão bem decorado em branco e preto, sentindo os aromas dos sais que já borbulhavam dentro da banheira, enquanto a segunda tomava dos bolsos o isqueiro e ia acendendo velas que estavam já à sua espera, sobre uma das mesas do apartamento. As luzes da parede mais à direta atravessavam o quarto e se repousavam sobre os azulejos e vidros da decoração no banheiro, dispensando o acender do lustre grandioso que descia do centro do teto; havia, ainda, algumas nesgas de luz amarela que se dissolviam na água descoberta entre os amontoados brancos na banheira que ocupava o centro do cômodo.

Por que caminhava com os olhos baixos, atentos à parafina das velas que derretia, quando entrou no banheiro, Laura viu apenas as roupas da outra sobre o degrau que levava à banheira. Foi, então, que o brilho das velas iluminou a espuma branca que cobria o busto de Débora que, afundada na banheira, sobrevoava as nuvens de sabão com a mão, arrancando pequenas conchas de espuma e depois as soprando no ar. Uma pequena pluma cheirosa, soprada pelo hálito da convidada, caminhou no ar e veio tocar a bochecha desprotegida de Laura. Débora viu: primeiro, a marca branca nas bochechas rosadas da outra e, em seguida, viu, naqueles olhos vizinhos, a mesma amarelada luz que, encontrada em todos os pequenos quadrados das paredes do banheiro, se refletia no cristalino úmido e concentrado. Laura pôs a primeira vela na outra borda da banheira, à frente de Débora; sobravam duas velas, e, então, ela caminhou no perímetro da banheira, colocando as outras restantes a distâncias simétricas de onde as costas da outra haviam tomado lugar. Contra todas as expectativas, o coque de Débora ainda estava suspenso e, um pouco abaixo da nuca, terminava o limite das águas, deixando à mostra um pescoço cuja penugem se arrepiava com a diferença de temperatura.

Débora estava de olhos fechados, relembrando do realejo onde o pianista tocava sua sinfonia solitária, quando, de repente, deparou-se com o silêncio mais agudo da outra. Endireitou o corpo na banheira, criando um espaço entre suas costas e a borda; já se aprontava para olhar para trás, quando sentiu as coxas de Laura deslizando ao redor de sua cintura até se acomodaram ao redor dos seus quadris. Débora, num suspiro gemido, sentiu as curvaturas do corpo da outra lhe acolher como se tivessem sido feitas para o seu tamanho, para que o seu corpo coubesse, tétrico, no dela, como num quebra-cabeça. Laura curvou seus dedos, em ambas as mãos, em formato de concha e, jogava sobre Débora pequenos amontoados de água quente que buscava na banheira. Água que escorria na pequena fresta que dividia os corpos e aquecia a ambas. Despejou algumas vezes sobre as suas próprias costas as pequenas conchas e, nas últimas, com as duas mãos transbordantes, deixou que um fio de água escorresse dos pés das orelhas até os ombros de Débora, quando então averiguou os aromas dos sais no corpo da outra: deslizou a ponta do nariz sobre a pele molhada, fazendo o mesmo percurso dos pequenos rios que lhes escaparam pelos dedos: com uma espontânea leveza, redescobriu o caminho descendente que a curva dos ombros de Débora fazia desde o lóbulo da orelha até os pequenos ossos expostos da clavícula. As mãos submergiram e foram buscar, embaixo da água, a sinuosa silhueta tão fiel à forma do S aliterado. Débora sentia que o pianista talvez não estivesse mais tão longe, já que a música parecia ser tocada na sua pele: todas as notas prolongadas sob sua derme; as pálpebras relaxadas não traduziam a tensão que despertava no seu corpo, a começar pela respiração de Laura que soprava um ar sobre os pêlos do começo do seu couro cabeludo, quando ela silabava os versos que Norah Jones cantava.

Os roupões foram buscados dentro do armário sob a pia e ficaram preenchidos de gotas ainda quentes da água e de intenções, desejos e ousadias expectadoras. Laura foi a primeira a retornar ao quarto; as pontas do cabelo ondulado ainda estavam molhadas quando ela preencheu, pela metade, as taças de vinho. Terminava de derramar a bebiba no segundo cálice, quando as mãos de Débora se apoiaram sobre seus ombros; seguiram pelas costas, desceram quadril e aquietaram-se presas aos ossos pronunciados da pélvis. E foram eles que, funcionando como alavancas do movimento, permitiram que elas se apertassem, uma contra a outra, numa ânsia mesurada de se fundirem, de invadirem o recôndito da outra, fazendo moradia interna, estadia eterna. Os tecidos dos roupões se roçavam e afagavam a pele que eles próprios escondiam ouriçadas. Débora dedilhava o alto relevo do quadril da outra, quando essa, com as taças em mãos, se virou de rosto para ela. Dividiram as taças, mas Laura bebericava, enquanto Débora engoliu todo o conteúdo numa tragada só. Uma gota do vinho derrapou nos lábios da última e despencou até a ponta do queixo, dando a deixa. Laura colocou a taça sobre o balcão e, encostando-se nele, buscou as cordas que fechavam o roupão da outra. Esperou que a gota estivesse na eminência da queda e, quando o fio menos visível do líquido roxo que segurava a gotícula estava prestes a se arrebentar, Laura aproximou sua boca do queixo de Débora e, segurando-a pela corda do roupão, garantiu que ela ficasse inteiramente presa. A língua recolheu o sabor envelhecido do vinho e difundiu-o pelos lábios e o céu da boca.

As mãos de Débora massagearam sua própria nuca, relaxando-a enquanto movia a cabeça de um lado para o outro, os olhos fechados; mal terminaram a massagem e as pontas dos dedos vieram, acompanhando a borda do roupão, desenhando o decote em “V”, sublinhando não só a linha que dividia a pele clara do tecido escuro, mas o relevo que oscilava durante a descida até as cordas que o mantinham o chambre fechado. Laura infiltrou o dedo dentro do nó mal-feito para desfazê-lo e, com a ajuda da outra, fez com que o vértice do decote se abrisse em duas linhas paralelas que, alguns centímetros distantes do abdômen, terminavam nos joelhos, o único lugar no qual voltavam a ter contato com a pele ainda quente do banho. Foi a vez dos dedos de Laura desenharem o limite da borda do roupão sobre a pele de Débora, como naquelas brincadeiras na qual se coloca a mão sobre um papel e, com uma caneta, faz-se o contorno dos dedos, de um lado do punho até outro. Entretanto, nessa brincadeira de tato entre as duas, o desenho que se formava não se definia por fora da forma, mas sim averiguando suas trepidações por dentro. Laura havia chegado até próximo ao umbigo e já sugava os lábios para dentro da boca, anunciando covinhas, quando a outra se afastou dando alguns passos para trás. As mãos deixaram que o cordão escorregasse pelos dedos até o último centímetro, como se não reconhecesse força para segurá-lo. Débora sorriu, indicando que voltava, mas Laura sorriu pedindo para ficar. Com o longo indicador no ar, Débora apontou a cama e, com o movimento, a manga do roupão subiu acima do cotovelo e revelou um braço magro, sobre o qual uma penugem escura não conseguia esconder a delicadeza das articulações. Antes de subir ao patamar da cama, Laura desprendeu segundos de atenção na pequena saliência óssea do punho de Débora: um pequeno monte que desconfigurava a retidão do antebraço e que passeou pelos interruptores do quarto, deslizando alguns e acendendo outros.

As luzes, escondidas nas frestas do teto de gesso, piscaram duas vezes, hesitantes, até se estabilizarem. A cor azul esbranquiçada, das lâmpadas de mercúrio escondidas nas valetas, trombavam contra a parede e morriam aos pés da cama, deixando os lençóis e os travesseiros seguros em sombra. Laura estava sentada sobre a beirada da cama quando, ao meio do cômodo, Débora elevou os ombros e deixou que o roupão caísse atrás de si. A travessa iluminação conseguia captá-la ainda longe da cama, desenhando no carpete do quarto um rastro de luz que desaparecia sob os pés de Laura. Cada passo que ela dava em direção à cama, Laura podia sentir o coração errante palpitar no começo da garganta. Os pés de Débora galgaram os dois degraus e só descansaram quando abandonaram o chão: com a ponta dos dedos sobre colo de Laura, Débora, lentamente, a deitou sobre a cama e, em seguida, sentou-se sobre ela, afastando as pernas e colocando-as, uma por vez, ao redor do quadril da outra. Agora, Laura podia ver o detalhe dos pequenos ossinhos a centímetros do seu olhar deslumbrado. Com suas duas mãos livres, buscou a nuca de Débora que, imediatamente, roubou-lhe o gesto, prendendo, com os dedos entrelaçados nos dela, os braços de Laura contra o lençol. Ela se ergueu sobre a outra, acomodando a púbis sobre o ventre de Laura, e subiu as mãos atrás da cabeça e com um movimento preciso, desprendeu o coque e deixou os cabelos despencarem para as costas e sobre os seus seios. Mechas longas e douradas que ficavam escurecidas sob a penumbra, e cujos reflexos amarelados, entretanto, brilhavam com mais intensidade sob a escassa iluminação da luz de mercúrio que, refletida na parede, era capturada pelo loiro vivo. O cheiro de xampu de camomila veio até as narinas de Laura que, num impulso nascido de dentro do seu corpo, conseguiu se sentar, posicionando seu rosto no caminho entre os dois seios pontiagudos de Débora, tocando a ponta de seu nariz na pele fina da outra. Suas mãos ascenderam joelhos, coxas e quadril, até se contentarem com o afunilamento da cintura, quando então se reencontraram, às costas. Agora, desfeito o próprio coque, Débora precisava se desfazer de algo em Laura: com a ponta dos dedos, segurou o queixo da sua prisioneira de pernas e levantou-o até deixar-lhe o rosto exposto; segurou a gola do roupão de Laura e, enfiando-lhe as mãos por baixo, experimentava a temperatura das costas e ombros dela, enquanto lhe retirava o roupão, abandonado ao lado do corpo, revelador.

Confundiram-se a noite inteira e criaram labirintos inimagináveis, dos quais nenhuma queria mais sair. Provaram sabores, palavras, olhares e sensações. As luzes dos letreiros começavam a apagar e, mais ao longe, os postes já iniciavam seu descanso da vida noturna; o dia amanhecia lá fora e, sob a tutela das pesadas cortinas que não deixavam a luz do sol entrar, elas dilataram a noite durante duas manhãs e uma tarde.

Saturday, April 12, 2008

Jano

"A porta do barraco era sem trinco
E a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída"
Os Mutantes - Chão de Estrelas

Dormiu muito pouco, por que acordou à noite, antes do outro dia: algo entre onze e meia e meia-noite. Sentiu o gosto na boca de noite perdida na cama quando os primeiros foguetes explodiram no céu e iluminaram a superfície gelada do vidro da janela, ainda molhada da chuva que acabara de cair. Nas minúsculas gotas que escorriam meticulosamente, enxergou tons de azul, vermelho e branco, refazendo-lhes o trajeto oposto ao imaginá-los se irradiando em círculos concêntricos no céu da América do Sul, sob a guia do Cruzeiro, que indicava, a anos-luz daquele Ano Novo, uma nebulosa escura à espera do calor de luz de supernovas distraídas. Ele gostava de estrelas, constelações e todos os mistérios espaciais que não podia tocar; gostava tanto mais do espaço sideral do que aqueles quinze minutos ao redor da meia-noite do dia 31 de dezembro, no qual todos – menos ele - concentravam suas crenças e depositavam uma perfídia de fé de que seriam outros, no minuto seguinte, no ano que vem; e isso nem quer inferir que ele não desejasse, também como uma religião abortiva, mudar aquilo que era: aquele jeito de inconseqüente deliberadamente preso nas apreensões de um ancião. Entretanto, ele acreditava que a mudança estava no espaço externo, no outro, no além-de ou, quem sabe, nas estrelas. Por isso, ele palmilhava sua casa, primeiro desenhando-a em papel vegetal, como um arquiteto; em seguida, movia todos os móveis de lugar, retirava tapetes, limpava lustres, colocava os colchões e almofadas ao sol, em trabalho laborioso de inseto, para então, reordenar a nova geografia da casa que, em essência uma mudança física, despertaria dentro dele aquela errada verdade de que o simples reposicionamento do interior do lar se constituiria num novo, sensível e cotidiano, capaz de impulsionar uma mudança maior, aquela que ele não podia desenhar com réguas e transferidores, pois exigia um deslocamento de sentimentos. Para ele, o Ano Novo era sempre mais velho do que o anterior, pois seria responsável por doses de felicidade e paz que ele jamais teria e, assim, ele mesmo desencarregava-o de tamanho fardo, esquecendo-se daquela alegria branca. Talvez fosse ele o único que fizesse do mês de janeiro um tempo completamente novo de vida, como numa página em branco ou uma agenda sem números de telefones, pois todos os outros preenchiam o mês do deus Jano com complexas aspirações e esperanças tão dolorosamente reanimadas do ano passado e dos anos passados atrás desses que, de inédito naqueles trinta e um dias, só se notariam os quilos a mais das ceias de Natal, as rugas da idade, um hematoma qualquer, umas olheiras pesadas e, numa hipótese grotesca de renovação, uma gravidez.

O stereo ainda tocava o mesmo CD de antes do sono, mas já nas últimas faixas, nos derradeiros sopros de vinte semínimas dos saxofones sopranos.

Sobre sua paixão pelas estrelas, tudo remontava a outro Reveillon, o primeiro que passou oficial e fisicamente separado de Soraia – e que aqui só cabe como explicação, pois, logo que acordara, ele se lembrou do porquê daquele CD de jazz: um presente dela às vésperas da tragédia, um cavalo de Tróia musical. Abrindo as portas da memória, atravessando as salas dos cinco anos seguintes e passando por baixo dos quatro portais de tempo – os Reveillons -, ele pode rever a primeira vez em que se viu escrito nas estrelas. Com os pés enfiados na areia da praia e as barras da calça dobradas à canela, ele fitava as ondas que se projetavam grandes no firmamento escuro da madrugada e desciam até a baía, reverenciando a cidade que crescia à sua margem; ondas atenuadas chegavam aos pequenos grãos de areia por baixo da planta de seu pé, como um leve vento, um afago molhado de lembranças entesouradas no sal do mar, um sal de outros tempos que guardava histórias de outros homens, daqueles que se jogaram ao mar e não mais voltaram e daqueles que chegaram, para não mais sair. Movediça, a areia se gracejava, escapando entre os dedos do pé daquele homem que já não mais sabia se ia ou voltava, muito menos de onde. Estava de olhos fechados, quando uma amiga veio ao seu lado, tomando lugar vagarosamente, de um jeito manso e ressabiado, à maneira de quem queria entendê-lo, sem amedrontá-lo:

- Vê aqueles caminhos escuros? - ela disse apontando rachaduras negras nas pinceladas brilhantes da Via Láctea.

Ele precisou recolocar os óculos, que estavam suspensos pela haste no bolso da sua camisa impecavelmente branca. “Aqueles?”, ele também pincelou com o dedo no céu, mostrando que já conhecia aquelas falhas de brilho no espaço.

- Aqueles, ela riu e bebeu da taça que ele levava suspensa entre os dedos das mão estendida ao lado do corpo, aqueles rios negros no céu são nebulosas escuras e você só pode enxergá-las porque elas não lhe deixam ver o que você realmente olha.

Ele virou o rosto para ela, com um sorriso exclusivo dos lábios, e acentuou todas as interrogações que pronunciava no rosto.

- Eu explico – ela disse, arranhando a garganta -. Nebulosas escuras são amontoados de poeira do espaço que se concentram, como uma nuvem entre as galáxias. Sabe quando você bate o pano sobre os móveis e uma coluna de sol bate no meio da sala e você só pode ver aquela poeira suspensa no ar porque um astro rei, lá fora, a ilumina? Algo assim. Entende?

Ele consentiu, sem jeito, com a cabeça, inclinando-a de lado, enquanto suspendia os ombros acima de sua posição natural. Insatisfeita e curiosa, ela tomou a taça dele, definitivamente e, deu-lhe às costas, afastando. Contudo, deu-lhe uma última explicação complacente e astronômica; como Austerlitz, para ela e Waterloo, para ele:

- São as nuvens noturnas, meu querido. Sem estrelas, só adensados de poeira molecular. E elas só existem porque, no nosso desejo mundano de ver a grandiosa Via Láctea, nos deparamos com esses escorreres de escuridão nos impedindo de contemplar o brilho mitológico da nossa galáxia-mãe. Um tapa-olho sideral, por assim dizer.

Ele baixou os olhos aos pés que, na regressão do mar, podiam ser vistos afundados na areia escura da praia; conferiu o relógio quando os primeiros fogos de artifício explodiram na esquina da enseada e ouviu um “feliz ano novo” já distante, mas reconhecivelmente vindo daquela mulher que lhe roubara a taça. Como numa miopia de sentimento, no instante em que re-conheceu as nebulosas escuras, ele quis muito desejar algo maior que ele. Tão maior que ele se contentaria em apenas desejar e, desejando, se tornasse, ele próprio, na coisa desejada, o objeto do desejo. Com tanta força de mudança, com tanta revolução claustrofóbica, querendo ser outro, querendo ser melhor, querendo qualquer coisa, os fogos explodindo no céu, as nebulosas resignadas, os amigos que vinham correndo fazer oferendas a Iemanjá, no meio daquele Ano Novo, ele apenas pediu que fosse pequeno o suficiente para amar as coisas que, maiores que ele, mais o amariam do que ele poderia conter; ali, com os pés cultivados no sal de tanto outros homens e na água de tantas ofertas, ele ficou só: ele e seu desejo, ele e ele mesmo. E, de repente, as estrelas, as nebulosas e o Cruzeiro do Sul. Tudo oferecido a ele, como nas pequenas barcas de flores brancas que partiam para o oceano distante.

Foi, a partir de então, que, sem Soraia e com desejo, ele dispensou o Reveillon à beira da praia regado a champagne e passou a noite do dia 31 para o dia primeiro dos anos seguintes lendo enciclopédias e especiais sobre o espaço, sobre as constelações, astrofísica, supernovas e tudo aquilo que estivesse a, no mínimo, cinco anos-luz dele. Naquele Ano Novo, a iniciar no primeiro track do CD de jazz, ele passara das sete às dez da noite revisitando os esquemas de constelações da Larousse, logo antes de ser pego num sono mortal, justamente quando as nuvens se adensavam para chover e limpar o céu, deixando a Via Láctea nua e brilhante, acima dos fogos de artifício.

Mas, é carnaval/ não me diga mais quem é você/ amanhã tudo volta ao normal/ deixa a festa acabar, deixa o barco correr...”: e não era carnaval, embora na mente dele, contra o desespero do sax, a marchinha na voz do Chico vibrasse com intenções alegres de lhe despertar. Virou o corpo de lado, dobrando as pernas em posição fetal e o travesseiro em “U” ao redor da cabeça, quando reparou o telefone sobre o criado fora do gancho. O quarto estava vazio da mesma maneira como o havia deixado antes de cair nos braços de Morfeu: a toalha sobre a cadeira da escrivaninha num ângulo do quarto, três copos e uma xícara de café aos pés da cama e um amontoado de CDs sobre tapete à frente da estante, mais à direita. Devido às janelas fechadas, um vapor humano impedia que o ventilador no teto arejasse o cômodo e, assim, aquele seu próprio cheiro de vida, ainda sonâmbulo, pairava nebuloso entre as paredes. As mãos largas, abandonando o peso que exerciam sobre as abas do travesseiro, permitiram que esse se espreguiçasse, voltando à forma natural; a cabeça sentiu o primeiro latejo nas têmporas quando tentou esticar os braços e colocar o telefone de volta ao gancho; comprimiu os olhos entre as sobrancelhas e as bochechas, como se a face quisesse engoli-los. Contudo, antes que pudesse reiterar o brinquedo de Graham Bell ao seu lugar, sentiu no meio das pernas um pulsar sangüíneo tão contundente que todo seu lado direito contorceu-se, jogando a cabeça para o ombro do mesmo lado. Sentiu-o, imperador, sob a vigia do edredom. A samba-canção estava congestionada; sua folga havia sido preenchida com aquele crescido conteúdo que parecia se asfixiar sob a seda preta. Os nervos nascidos nas pernas e nos ventres, cujas terminações se evadiam para as virilhas e vizinhos, seguravam com cordas e correntes o prisioneiro de pano entre as pernas e ele sentia que, em breve, elas sucumbiriam e cansadas, deixariam que ele fugisse. Tentou amaciá-lo com suaves apertões e massagens paliativas, mas aquela projeção toda se retesava no imediato seguinte, ainda mais empenhada em se livrar dos carrascos nervos. Por fim, deitou-se de barriga para baixo, jogando, contra a fúria do rebelde, todo o peso do seu corpo recém desperto. Reviu o telefone fora do gancho e, agora, com o interstício entre as músicas do CD no stereo, pode ouvir os sons espaçados e eletrônicos que vinham de uma das partes da estrutura em forma de alteres. Puxou-o pelo fio em espiral que ficara suspenso numa das quinas do criado-mudo e, tomando-o entre os dedos, conferiu o barulho de “ocupado” ao pé da orelha, que ardia e queimava, avisando-lhe de que havia interrompido o fluxo de sangue para ela durante o tempo em que permaneceu, com o peso de sua cabeça, sobre sua cartilagem delicada. Colocava-o no gancho, já virando a cabeça em sentido contrário, quando uma dúvida amarga impossibilitou o retorno ao sono. Duas explosões, mais próximas à parede da janela, coloriram o quarto de amarelo ouro, enquanto ele trincava as duas arcadas na boca, provando o primeiro gosto da dúvida: o da possibilidade; deslizou a mão sobre as bochechas e coçou o queixo, baixando o movimento até o pomo de Adão, a projeção vitoriosa dos níveis exorbitantes de testosterona. Os pêlos da barba de dois dias por-fazer já perfuraram a pele e, às vezes irritados, anunciavam os primeiros brilhos de grisalho precoce, num rosto sem marcas ou rugas, mas desenhado com traços vigorosos ao redor de olhos fundos, cujas olheiras contornavam a orla das pálpebras, com seus cílios longos, quase femininos. Não se lembrava de ter atendido ou ligado para ninguém, mas, quem sabe?, ele mesmo sabia que falava à noite e algumas vezes acordou com suas próprias falas, complicadíssimas e sem sintaxe. Soraia sabia disso e até, algumas vezes, divertia-se velando o sono do, então, amante. O barulho pontilhado que ele ouvira não testemunhava nenhuma das hipóteses e, com um remorso grave, ele se arrependeu de não ter trocado a relíquia telefônica por um sem-fio com opção rediall. Provou, em seguida, o segundo sabor da dúvida: o da raiva. Bateu o telefone sobre o aparelho e resmungou muxoxos fracos pelo recente despertar. E se tivesse ligado? Para quem, Meu Deus? Para quem ele ligaria em pleno Ano Novo, quem merecia um pouco daquele seu desejo? Desconcentrado e, agora, com o sono espantado, ele se sentou sobre a beirada da cama, segurando, por baixo da samba canção, o desprendimento febril do corpo. Gingou-o entre os dedos de uma mão, enquanto fitava, apreensivo, uma possível chamada vinda do telefone. O coração acelerou o ritmo do sangue e do badalar da mão, enquanto o ventre começava a se inquietar dentro de uma respiração que faltava. As estrelas: ele se arrepiou observando-as tilintar. Uma pausa: dentro e fora. O ritmo se corrompeu, alguém do lado de fora gritou “feliz ano novo” ao mesmo tempo em que um carro berrava sua buzina e ele se jogava de costas à cama, exausto e desesperançoso, sem olhar o telefone, sem segredar nada às estrelas, sem buscá-las nos fogos de artifício, apenas reencontrando-as, também exaustas, sob as pálpebras.

Deitado sobre a cama, com o corpo já relaxado, ele podia rever as amantes noturnas, agora no céu, que se divertiam com a fantasia dos homens daquele pequeno planeta que, inutilmente, tentavam colorir aquele seu pequeno ângulo do universo com explosões ínfimas, de cores mórbidas. A cada novo estrondo no céu, elas cochichavam entre si, zombeteiras, sem se moverem no escuro do infinito – afinal, eram estrelas e não asteróides. E esse era um dos motivos pelos quais ele se prendera a elas - embora não pudesse conscientemente assumi-lo -, pois por mais que elas, as estrelas, pudessem ter morrido, tão longe em outras galáxias, a sua luz chegaria aos olhos dele, refletindo-se no cristalino e voltando ao espaço, como num telegrama de boas vindas sem data de chegada e sem destinatário. Seriam fiéis companheiras de madrugadas adentro, desde a primeira estrela no céu, solitária e saudosa, que o levaria de volta a casa, até a última, que perduraria até ser afogada no azul límpido de um céu estuprado pela estrela dona daquele sistema, o Sol. Assim, ele jamais estaria só: dividiria com as estrelas a sua solidão-exaustao, mesmo que elas jamais pudessem o ver, naquele planeta sem luz própria, mas do qual – e disso, elas sabiam – vinham olhares curiosos que as faziam se sentir observadas, estrelas de um universo infinito.

Wednesday, April 02, 2008

Cabra-cega




"Como um conto de fada tem sempre uma bruxa pra apavorar


O dragão comendo gente e a bela adormecida sem acordar


Tudo que o mestre mandar e a cabra cega roda sem enxergar


E você se escondeu, e você esqueceu..."


(Jardins da Infância - Elis Regina)




A última semana de férias na casa da vovó Marta. Lembro-me, como se fosse o café da manhã de hoje, do cheiro antigo que se desprendia das manchas verdes das paredes mofadas, principalmente no teto, onde o esverdeado se alastrava até o lustre transparente e, em algumas de suas expansões, ganhava colorações preta, branca ou cinza; os cobertores xadrezes cheirando a naftalina me faziam espirrar convulsivamente durante a noite, fazendo sempre com que eu jogasse-o em cima da minha companheira de cama, a Andréia, a filha do primeiro casamento do meu tio Juca, irmão mais velho de papai. Naquelas noites de férias, numa outra cidade longe da minha - a pequena cidade onde vovó havia crescido, casado, enterrado o marido e, depois de nove décadas de existência teimosa no mundo, morrido -, quando me via livre do cobertor, subia às pontas dos pés para alcançar a tranca de ferro da porta de madeira pesada do quarto de hóspedes, rodava-a vagarosamente para não deixar que o barulho do trinco cedendo acordasse os outros cinco primos que, como eu, dividiam as camas dos beliches; pé ante pé, subia as escadas, me apoiando no corrimão envernizado, arregalando os olhos para ajustá-los à nova escuridão. O coração batia ligeiro com medo das figuras do escuro, dos monstros que me esperavam dentro dos quartos e ao final de cada corredor; só descansava quando visualizava a luz de lampião da pequena varanda no andar superior acesa, entre as frestas da porta de madeira, onde vovó despendia algumas horas da sua noite fumando o palheiro e ouvindo boleros de décadas remotas.

Aquele mais recente antro da casa fora construído, há anos, pelas mãos já enrugadas de vovô que, prevendo a morte em alguns meses, dedicou-se a cortar algumas árvores do quintal para não só usar daquele espaço como sua sepultura, mas também aproveitar a madeira para construir aquela pequena projeção da casa, na qual, nos anos seguintes a sua morte, vovó Marta, religiosamente, sentava-se ao mais tarde da noite com seu pequeno rádio de pilha ligado na rádio que vovô Zezinho costumava ouvir. Certas vezes, ainda de dia, entre o cuidar dos bichos e o ordenamento das compras na quitanda, ela sintonizava o rádio na estação de esportes e deixava-o tocando durante o jogo de futebol inteiro – até os comentários finais – sobre a mesa de bar de metal improvisada sobre aquela espécie de sacada rudimentar. Numa daquelas noites da última semana de férias na casa de vovó Marta, ainda posso me lembrar do frio brilhante do corrimão amarronzado e o cheiro do cigarro de palha que me guiava na escuridão mansa do casarão. Lá fora, o barulho da estação de rádio e a voz aveludada do seu locutor, que, entre os silvos dos grilos que habitavam a vegetação rasteira entre as àrvores e o quase imperceptível ranger da madeira do balanço de vovó, anunciava mensagens de outros mundos, além de onde meu olho conseguia distinguir vida: recado de um tal de Batista para um outro Joãozinho-da-hora, avisando que os bezerreiros chegariam logo ao amanhecer no sítio do Nhô Durval ou, às vezes, um convite público para a festa na praça da cidade, a mando do prefeito Pedro. Com os ombros recolhidos num xale tricotado, vovó se badalava como um sino de igreja na cadeira, com os olhos cansados, que pareciam contar estrelas em busca das cadentes, apertados atrás das fumaças do cigarro amarelo, como se estivesse sentindo algum presságio nas pitadas de fumo ou lendo um destino nas constelações. Do jardim que ficava a nossa frente, escapava cheiros de manjericão, alfazema, laranja-da-terra, do solo molhado ao redor do córrego que cortava aos fundos a propriedade, com seu leito de água maior que três passadas de pernas de gente-grande; mas de todos eles, eu especialmente me lembrava mais de dois: o da dama-da-noite, que nascia rente ao muro lateral; e o do manacá, não só pelo cheiro, mas pela música que Dona Geralda cantava sempre que passávamos correndo pela cozinha, perguntando apenas para ouví-la cantar com aquela voz adocicada nascida do centro dos seus seios fartos e negros: “Dona Gê, de quê que é esse pé?”. E ela respondia enquanto mexia com a colher de pau nas panelas de ferro no fogão à lenha, mostrando os dentes mais brancos entre os lábios mais grossos que eu já vi:



Lá de trás daquele morro


tem um pé de manacá.


Nóis vai casá e vai prá lá. Cê qué?


Eu quero te beijá, eu quero te agradá,


eu quero me casá e te levá prá lá


Cê vai?Eu panho toda a flor do pé de manacá


e faço uma coroa prá te enfeitá. Cê qué?





Já mais velha, ainda na faculdade, recebi a notícia de que vovó Marta falecera naquela mesma sacada. Encontraram-na, sorridente, no mesmo balanço; disseram que a cadeira continuava a balançar quando Dona Gê deu notícias do seu óbito; entretanto, o rádio estava desligado. Durante o velório, nenhum dos convidados pode negar o cheiro quase enjoativo que o manacá liberava, como se também chorasse odores pela morte de vovó. O perfume grudava nas ventas, envenenava o sabor da comida e, os mais alérgicos, nem ao menos conseguiram ficar perto demais do caixão. Fui à primeira a sair ao quintal, onde coveiros já haviam cavado a vala de vovó ao lado da pequena cruz na qual se lia “José Martins”, em caligrafia do próprio defunto. Recuei dois passos quando vi que todas as flores do pé de manacá estavam roxas, intensamente roxas, sem que um minúscula flor branca existisse. Pela noite, foi a vez da dama-da-noite derramar seu pranto e quase ninguém na casa conseguiu dormir. Dona Gê deixou o rádio ligado em cima da mesa de metal durante a inteira semana que se passou, até a missa de sétimo-dia.


Mas, de volta àquela última semana, nos báus dos meus verdes anos, na noite em que subi as escadas até o segundo andar e de lá me encaminhei para varanda, lembro-me da voz gutural de vovó, que acompanhava um bolero argentino com um castelhano impecável. Sentada numa das vigas de madeira a sua frente, vovó viu que eu acompanhava o ritmo batendo no chão com o pé preso num chinelo velho e num número de calçado muito maior. Eu a olhava de baixo para cima, imaginando para onde teriam ido a cor e o brilho do cabelo dela, tão branco e tão opaco; ela também me olhava, levantando ou baixando a sobrancelha delgada com a entonação da música, que ela fazia traduzia para o meu português bambo pela interpretação dos seus gestos; com as pontas das unhas, batia na mesa de metal, regendo o meu compasso no pé e, eu, assim, respeitava seu dote de maestro e sorria quando nossos retumbares coincidiam com a pancada mais forte do bumbo no alto-falante do rádio. Quando o intervalo cortou nossa sinfonia de caixotes, vovó desligou o rádio e disse “Carol, já ouviu a história do cachorro chamado Plutão?”. Apenas neguei com a cabeça, já me levantando e, em seguida, me acomodando no colo fofo dela. “Então, eu vou contar para você. E você aprende e conta para os seus netinhos quando eles vierem te visitar. Você promete?”. Eu prometi, deitando meu rosto no ombro dela e experimentando aquele cheiro antigo que ela levava, de alguma água de cheiro dos velhos tempos de moça soleira. Dama-da-noite.


Negro, com os olhos em brasa,


Bom, fiel e brincalhão,


Era a alegria da casa


o corajoso Plutão.




Fortíssimo, ágil no salto,


Era o terror dos caminhos,


E duas vezes mais alto


Do que o seu dono Carlinhos.




Jamais à casa chegara


Nem a sombra de um ladrão;


Pois fazia medo a cara


Do destemido Plutão




Dormia durante o dia,


Mas, quando a noite chegava,


Junto à porta se estendia,


Montando guarda ficava.




Porém Carlinhos, rolando


Com ele às tontas no chão,


Nunca saía chorando,


Mordido pelo Plutão...



Plutão velava-lhe o sono,


Seguia-o quando acordado:


O seu pequenino dono


Era todo o seu cuidado.




Um dia caiu doente


Carlinhos.. junto ao colchão


Vivia constantemente


Triste e abatido, o Plutão.




Vieram muitos doutores,


Em vão. Toda a casa aflita,


Era uma casa de dores,


Era uma casa maldita.




Morreu Carlinhos... a um canto;


Gania e ladrava o cão;


E tinha os olhos em pranto,


Como um homem, o Plutão.




Depois, seguiu o menino,


Seguiu-o calado e sério;


Quis ter o mesmo destino;


Não saiu do cemitério.




Foram um dia à procura


Dele. E, esticado no chão,


Junto de uma sepultura,


Acharam morto o Plutão


Chorei compulsivamente, segurando o pescoço de vovó com os dois braços já fracos. Ela abandonou no cinzeiro de estanho o toco do cigarro que já havia se apagado há muito tempo e também me confortou com seus dois grandes braços e, assim que o fez, eu chorei ainda mais, dando soluços entre um fôlego e outra lágrima. Tentei segurar o peito convulsionado controlando a respiração, mas vovó dizia que eu podia chorar, que fazia bem chorar. Eu perguntei se a história era verdadeira, esperando que ela negasse e a minha dor pelo Plutão se esvaziasse. “Todas as histórias são verdadeiras, minha menina encarolcolada”.


Naquela noite, adormeci aquecida no colo de vovó e acordei já com os meninos dobrando seus cobertores cheirando a naftalina. Andréia, a mais velha de 10 anos, se impunha puxando o cobertor por baixo de mim. “Bom dia, flor do dia”, ela dizia imitando a vó. Tomávamos café numa mesa no centro da grande cozinha e chegávamos até lá atraídos pelo cheiro de bolo de cenoura, de bolo de fubá e de pudim de pão que Dona Gê fazia. A rechonchuda negra, à lá Aretha Franklin, preparava tudo com carinho, como pequenas obras de arte; buscava nos pés ao fundo do quintal os cachos de banana mais maduros; catava no chão as goiabas amareladas e maduras, transformando-as na mais apetitosa goiabada; conversava com a galinha escolhida para um almoço, tratando-a por “vossa senhoria” e rezava uma Ave-Maria em voz alta enquanto dilacerava o pescoço da ave e deixava seu sangue pingar na terra marrom do quintal. Fazia leite-queimado como ninguém e brigava com vovó Marta a respeito da saúde dessa. “Dona Marta, a senhora vai ter que um dia sair daqui. Viva ou morta. O falecido não vai mesmo a lugar nenhum. Melhor ir procurar um médico lá na cidade. Meu Jorge leva a senhora lá e traz de volta quando vier com a feira”. Vovó relutava apenas para desfrutar, nos minutos seguintes, a atenção que Dona Gê repousava sobre ela, enquanto escaldava o café.


Éramos seis: eu, a filha mais nova do filho mais novo; Andréia, a filha mais velha do filho mais velho e a capitã-vilã de todas nossas peripécias; Denise, que se ausentava de brincadeiras ao ar livre, preferindo sempre brincar com suas bonecas de pano e seus jogos de chá em miniatura; Tomás, o único loiro da família que, por isso, passava por maus bocados quando todos nós caçoávamos da sua origem “lata de lixo”; André, o irmão e escudeiro óbvio de Andréia e com a qual nutria relações oscilantes de admiração e ódio; e por fim, Joaquim, o Quinzinho, que andava com as calças curtas á altura da canela e sonhava em ser pirata, o que justificava sua mania de andar com olho esquerdo fechado, simulando um tapa-olho. Na tarde do último dia de férias na casa de vovó Marta, depois de travarmos uma guerra de mamonas no quintal, nadar no córrego com o auxílio de uma câmara de ar de pneu de caminhão e passarmos um par de horas trepados no pé de goiaba, a noite caminhou no céu escondido atrás da mata do córrego sem que nos déssemos conta do tempo. Estávamos sentados nos degraus de concreto da área de serviço, iluminados pela chama amarela do candelabro preso à parede, observando Denise com suas xícaras e bules minúsculos quando Tomás deu a idéia de brincarmos de cabra-cega. Houve uma animação espontânea em todos nós e até mesmo Denise empurrou, desleixada, as quinquilharias para dentro de um saco e concertou a saia no corpo, já se aprontando para a brincadeira.


Dona Gê havia, há pouco, preparado café e derretia torrões de rapadura em duas xícaras brancas de porcelana oriental. Quase derrubamos sua bandeja na nossa entrada tempestuosa na casa, à procura do quarto ideal. Ela bradou: “seus cambada! Vai que eu queimo ocês tudo!”, mas logo consertou as xícaras e subia as escadas, tomando seu lugar ao lado de Vovó Marta, quando elas então ouviriam a novela pela rádio. Andréia ia à frente, abrindo portas e acendendo luzes, dando impressões sobre os quartos e os obstáculos. Andamos o corredor do primeiro andar inteiro e, por fim, concluímos que o melhor lugar seria na sala de entrada, bastando apenas retirar as peças quebráveis, alguns tapetes escorregadios e mover alguns móveis para distante da parede, a fim de se criar esconderijos. Buscamos sorrateiramente um pano de prato limpo nas gavetas do armário abaixo da pia da cozinha. Quando voltávamos à sala, Andréia fez um gesto para que formássemos um círculo; as mãos rodeavam os pescoços do primos vizinhos pela esquerda e pela direita. Baixando o tom de voz, Andréia ameaçou: “quem chegar por último é a cabra-cega”. O círculo se desfez e a algazarra tomou lugar. Saímos batendo os pés contra o assoalho, o que fez com que Dona Gê, do segundo andar, saísse da varanda e apontasse seu corpo lá em cima, gritando “olha a levadeza! Nada de rapa de angu com açúcar amanhã, hein?”.


Déia, na dianteira, chegou primeiro. Eu, Tomás, André e Quinzinho chegamos em seguida, ofegantes, mas Denise, com seus sapatos de boneca, embora tenha tentado correr, chegou apenas segundos depois, já com as mãos presas à cintura, insatisfeita. Ameaçou dar as costas e voltar às pacatas bonecas, quando Quinzinho, agora com os dois olhos abertos, em posse do pano de prato, vendou-a e puxou-a para dentro da sala, fechando a porta logo depois. Foi Déia quem puxou, já se distanciando de Denise:


- Cabra-cega, de onde vieste? – disse entre risos.


- Eu não quero ser a primeira – ouvi Denise dizer com a voz fina e baixíssima.


- Cabra-cega, de onde vieste? – entoamos todos aqueles que enxergavam, ainda que pouco no começo da escuridão da noite.


A cabra-cega até tentou se desfazer do pano de prato, mas interrompeu as mãos a caminho do rosto e, expulsando um ar cansado das narinas, jogou-as para frente, com os dedos abertos, apreensiva, e com um esboço de sorriso desafiador, que só se configurou completo depois de três passos às cegas. Foi a primeira vez que vi Denise sorrir de um jeito sincero, sem que seu pai lhe tivesse pedido a graça. De repente, ela ficou mais leve, o rosto mais corado abaixo do pano branco que lhe cobria os olhos. Não conseguia me mexer logo atrás do sofá; bastava me agachar para esconder, mas qualquer coisa me manteve estática, à espera de que aquele sorriso recém descoberto, de repente, nascesse também em mim. Ela veio caminhando em minha direção, ainda mais lenta dentro dos meus olhos. “Do quartel”, ela respondeu, por fim, gritando em alívio. Os outros quatro corresponderam “o que trouxeste: ouro ou prata?”. “Prata”, ela quase não terminou a palavra em meio a tantas risadas.


- Coma casca de barata! – gritaram todos, com todo o ar dos pulmões, menos eu, que só pude abrir a boca, como em um grito para dentro.


- Anda, Carol, você está mais perto: bate nas costas dela! – Déia forçosamente modificou a voz para evitar ser perseguida pelo som que emitia.

Ao redor de Denise, o barulho era geral e intenso. Quinzinho batia a mão contra as paredes, Tomás entoava uma canção para desnorteá-la, esforçando a garganta nas notas mais agudas e André corria atrás da irmã onde quer que ela fosse, acabando por discutir em voz alta os irmãos. Contudo, foi para o silêncio da região onde eu me escondia que Denise caminhou. Algum menino gritou para que eu saísse de lá, veio até as costas de Denise e deu-lhe um puxão pelo rabo de cavalo, mas ela nem se abalou. "Vai procurar quem te bateu!", Andrezinho berrou logo atrás dela. Ela ignorou: veio até o sofá, apoiou os joelhos sobre o assento e aproximou o corpo do encosto. Fiquei a centímetros do seu toque revelador. “Cabra-cega, cabra-cega, você vai fazer de mim a sua cabra-cega”, eu balbuciei sem som, cantando para dentro do silêncio e de mim que, para ela, naquele exato momento, eram a mesma existência. Minha mão estava apoiada sobre o sofá, quando a mão dela veio exatamente sobre a minha. Meus lábios se separaram ainda um pouco mais. Ela não tardou a me oferecer o sorriso que eu esperava e, assim, acabei trocando o lado da mão que se encostava à superfície do móvel; dei às costas de minha mão ao sofá e ofereci a ela a palma cheia de linhas, como a da sorte e do amor, que ela acabou aceitando e apertando. Foi ela quem se pronunciou, revelando os pequenos dentes brancos no rosto que reproduzia a coloração azulada do começo da noite:


- Cabra-cega, de onde vieste? – ela fechou os dentes na boca rósea, mantendo, porém, o sorriso.


Denise empurrou o sofá e, num impulso, voltou a ficar em pé, levando as mãos atrás da cabeça e desfazendo os dois nós que prendiam o pano de prato à sua nuca. Guardei minha mão no bolso do short jeans, tocando as pontas dos dedos umas nas outras, como se percebesse uma matéria delicada que ficou na minha pele. Seus olhos estavam fechados quando a venda lhe caiu do rosto. As pálpebras, em calmaria, foram se descortinando. As beiradas brancas dos olhos estavam um pouco vermelhas e eu lembrei de mim mesma, na noite anterior, porque sabia que meus olhos também estavam com seus cantos vermelhos, cheios de veias irrequietas, quando vovó Marta terminara a história. Denise contornou o sofá e, ajeitando o pano de prato, vendou-me os olhos, apertando com força excessiva os nós que dava atrás da minha cabeça. Pensei que, sentindo-a assim, logo atrás de mim, ela teria invadido meu olhar e habitava, agora, a minha cabeça, modificando à sua maneira todo o lado de dentro dos meus olhos. Enquanto me tocava, eu pensava, já com medo de que ela pudesse ler a minha mente: “cabra-cega, cabra-cega, você quer saber de onde eu vim?”.


- Cabra-cega, de onde vieste? – ela repetiu para que todo mundo a ouvisse.


- Do quartel... – eu disse, enquanto contraía as pálpebras sobre o pano.


- O que trouxeste: ouro ou prata? – eu podia ouvir a voz de todos, mas a voz fina que eu distinguia a alguns metros de mim era a que ecoava, vinda de dentro.


- Prata – apertei os dedos da mão, novamente, no bolso do short.


- Coma casca de barata! – riram-se todos.


Recomeçara a folia. Agora, jogavam travesseiros em mim e aqueles socos de plumas vindos do ar me desorientaram. Eu dava voltas sobre meu corpo, contornava móveis, dilatava as habilidades de audição e vazava os braços no ar numa coreografia agonizante. Não a reencontrei em nenhum dos cantos e esconderijos que eu lembrava em mente, redesenhando arquitetonicamente a sala na minha imaginação. Por fim, consegui pegar pelo pé o André, que tentava pular o sofá para se esconder junto à irmã.


Brincamos o entardecer inteiro até o momento em que na sala já não se podia mais ver nada, nem uma fresta de luz das lâmpadas dos vizinhos. E durante todo o tempo, acidentalmente eu me esbarrava por Denise, no meu caminho de fuga ou de mudança de esconderijo. Foi Andréia que sugeriu e foi acatada imediatamente:


- Agora é a brincadeira do “gato mia”!


- ‘Tá com você, Denise!


- Eu de novo? – ela tentou parecer zangada, mas na sua voz havia uma tranqüilidade que não deixava suspeitas.


- Você foi a última cabra-cega!


Gritamos, em coro, com gargalhadas e guizos alvoroçados. Mas, de repente, nos calamos, como uma orquestra que interrompe os tambores para dar louvor às clarinetas. Cada qual já havia se escondido no lugar estratégico. Com manias de pirata, Quinzinho equilibrou-se com um pé numa das poltronas e outro na cristaleira, fazendo um vão em “V” com as pernas, de maneira que, Denise, se passasse por ali, atravessaria o meio da suas pernas, sem percebê-lo. Andréia, seguida de perto por André, se escondia na quina entre duas paredes da sala, perto da porta. Tomás trocava de posição constantemente, desviando a atenção que Denise poderia prestar a nossos esconderijos. No escuro, eu tateava os móveis e procurava um lugar para mim que não fosse muito óbvio, mas nem muito complicado, pois desejava, também às cegas, que ela me tocasse. Avaliando a sala, parei no centro dela onde não havia nenhum móvel e nenhum movimento. Percebi Tomás ziguezagueando ao meu redor, como uma mosca, e temi contente que ela estivesse por perto. A primeira coisa que senti me tocar fora seu cabelo, roçando no meu rosto; ela havia caminhado de costas até onde eu estava e encaixou-se com uma precisão de peças de quebra-cabeça. Eu poderia ter corrido, afastado, gargalhado, puxado seu cabelo, mas permaneci imóvel, o único móvel estático no centro da sala. Com as mãos estendidas ao lado do meu corpo, busquei nos dedos a prata que ela havia deixado na brincadeira anterior e consegui ouvir o barulho das peles dos meus dedos roçando uma na outra. Ela poderia ter se virado bruscamente, dado um pontapé, feito um escândalo, mas ela também ouviu o barulho da minha mão, como num tilintar de taças ou choque de peças metálicas e, no meio da escuridão, ela também buscou meus dedos. E ficamos as duas imóveis. Agora, atrás dela, eu pensava: "será que sou quem entrou na cabeça dela?".

Bateram na porta. Dei dois passos para trás, acompanhando o som das batidas, no instante em que achei que aquelas pancadas vinham de dentro de mim. “Agora, dentro de mim, ela quer sair? E se a porta emperrar, e se eu não deixar? Ela vai destruir as minhas paredes? Ou vai ficar para sempre?”, eu respirei com sofreguidão. Dois murros seguidos da voz impaciente de Dona Gê que, do outro lado da porta, com medo do silêncio que havíamos deitado sobra a casa, agourou má criação. Senti o vestido de Denise se afastar de mim, movendo o ar ao meu redor, espantando o calor que ela própria me dava e que agora, tomava de volta. Acenderam a luz e a fotofobia foi lancinante, custando-me a contração imediata das pálpebras. Hoje, nos dias de verão, é só fechar os olhos e colocar a cara ao sol que posso refazer a coloração vermelha que assisti nas minhas pálpebras trespassadas pela luz naquela última noite de férias. Abri os olhos com a mesma paciência com que vi Denise levantar suas pálpebras. Um pouco mais distante agora, ela continuava de costas para mim e, à nuca, levava dois nós apertados feitos com o pano de prato, indicando que, ainda no escuro, ela havia mantido a venda da cabra-cega. Eu me lembro de ter memorizado “cabra-cega, cabra-cega, porque é que você não me vê?”, enquanto a ajudava a se livrar do pano de prato. Os outros quatro saíram da sala sob o comando enérgico de Dona Gê, mais redimidos, mas ainda insaciáveis. Andréia e o irmão, Tomás e Quinzinho dominaram a cozinha de ligeiro, certos de que havia uma travessa de doces à espera deles ou lascas de rapadura para que ficassem amolecendo debaixo da língua. À luz inteira, apenas eu e Denise contra os nós do pano de prato.


O pano caiu sobre o chão de madeira da sala. Dobrei os joelhos para pegá-lo no assoalho de madeira envernizada e, olhando para aqueles sapatos negros de Denise, percebi que ela os fazia dar meia-volta, ficando de frente para mim. Subi à posição ereta com alguma demora e o queixo grudado no peito. Medi minha altura com a dela pela distância de nossas mãos. Quase alcancei, com os ouvidos, o barulho de seus olhos que me desvendavam inteira, perguntando talvez “cabra-cega, de onde viestes?”. Das cenas seguintes, lembro-me apenas de abandonar a sala e jogar o pano sobre o sofá, correr pela cozinha, tomar o quintal e seguir o caminho de chão batido até a beirada do córrego. Escuridão: eu queria de novo viver a escuridão e, entre os pés de manga e as trepadeiras da parreira, tudo que eu podia sentir era a escuridão. Lembrei da pequena ponte onde, mais cedo, havíamos brincado de pular para dentro do córrego e, comecei a acelerar os passos em direção a pequena passagem sobre a água. Os meus olhos , depois de alguns minutos dentro do breu, já distinguiam uma coloração prateada que a lua perfazia sobre todas as plantas e sobre a água que corria sem presa entre os dois barrancos de terra. “Prata”, eu disse assim que sentei sobre a beirada da ponte, deixando os pés soltos e descalços no ar; olhei para cima, acima das serras que existiam a leste da casa de vovó Marta, num pedaço de céu negro onde só aquele astro imperava, e pensei “cabra-cega, cabra-cega, então você veio da lua?”.

A lua deslizou no céu e eu a acompanhei se afastar dos morros durante bons e largos minutos. Até que ouvi o quebrar de galhos e o esmagar de folhas vindos do caminho de onde eu havia chegado. Já sem os sapatos, Denise estava de um lado do córrego e começa a caminhar para perto de mim. Puxou a barra do vestido para baixo das coxas antes de se sentar ao meu lado. Senti que ia cair nas águas do córrego e me sujaria inteira de prata ou me dissolveria em prata e, quando fosse amanhã de manhã, eu já teria vaporizado e voltado a ser a lua, do outro lado do mundo, enquanto a lua que agora despencava do céu, se derreteria nas águas, nas plantas e nas mãos das pessoas que morassem no mais distante do mundo além daqueles morros, no mundo onde era preciso mandar mensagens e convites para quem se gostava. Denise tocou minha mão, como se não pretendesse e, enquanto eu olhava as águas prateadas que passavam por baixo de nossos pés, ela levantava o queijo e fitava a lua, como se pudesse calcular a distância de nós duas até lá.


- Se eu morasse na lua, você ia até lá brincar comigo? – eu disse depois de severos cortes nas frases que criava mentalmente para falar alguma coisa com ela.


- Se você morasse na lua, eu viajava num cometa para brincar com você – e, dessa vez, ela buscou a minha mão e virou-a para ela: palma com palma. E ficamos assim, até voltar à casa, quando Dona Gê já uivava sobre nosso paradeiro.


Dormimos na mesma cama, fitando a Lua que, agora, nem parecia tão distante.


Denise foi embora antes que eu acordasse, deixando sentada em cima do criado do quarto de hóspedes uma de suas bonecas, que embora tivesse o rosto direcionado para a janela, tinha os olhos vendados pelo mesmo pano de prato.


Foi a última noite daquela semana de férias. E a primeira de uma vida inteira.