Porque uma conversava deselegantemente ao telefone ou porque a outra brincava com o palitinho de picolé no fundo do novo copo de caipirinha, revolvendo o açúcar branco entre as pedras de gelo e as rodelas verdes de limão, ou porque estavam tão distantes – embora estivessem centímetros uma da outra, poderiam estar em mesas separadas. Mas, naquela tarde de sexta-feira de em julho friorento, elas se colocaram e se encontraram no mesmo lugar, cada uma do seu lado da mesma mesa. Isabela terminou a ligação, retirando os óculos de sol, dobrando suas hastes e colocando-o ao lado do seu copo, ainda cheio, de caipvodka. “Eu te ligo de volta” e ela fechou o flip do celular; mostrou-o a Débora, balançando a cabeça negativamente de um lado para outro, porém com um sorriso calmo nos lábios. Isabela não entendeu quando a outra parou de remexer o palito no copo e fitou, silenciosa, primeiro o celular desligado e, levantando a sobrancelha esquerda, fitou-a também. Débora abandonou o laborioso exercício de dissolver o açúcar e recostou-se no assento da cadeira, apoiando seus ombros na proteção de madeira. Entrelaçou os dedos e apoiou-os sobre o abdômen.
- Lembra da primeira vez que a gente veio aqui? – Isabela permanecia com o sorriso diáfano, colocando o celular ao lado dos óculos e do copo, - não tinha aquele ambiente ali em cima, nem esse balcão enorme aqui do lado, mas as cadeiras eram as mesmas e as mesas continuam tão sujas quanto.
Débora tentou sorrir, mas apenas ensaiou um movimento de boca. Há quase dois anos, ela disse olhando para a avenida lá embaixo, parece que é mais recente quando você está por perto. Isabela consentiu com a cabeça, tornando a buscar o celular que, desta vez, não tocou. Apenas o abriu e brincou com as teclas, colocando-o entre o olhar de Débora e o seu. Demorou alguns minutos entre os barulhos eletrônicos e completou: “faz um ano, onze meses, cinco dias e quinze minutos”; bateu as duas partes do celular e devolveu-o à mesa. “Só posso ser tão específica porque o celular ainda é o mesmo”. “E o mesmo toque chato também”, Débora retorquiu com os dentes brancos à mostra. E, pela primeira vez na tarde, elas compartilharam o mesmo sorriso nostalgicamente doce e, assim, diminuíram a dimensão da mesa daquele restaurante.
A avenida que margeava o restaurante tinha pistas largas em suas duas mãos, o suficiente para caber três carros paralelos em sua dimensão de largura. Havia faixas de sinalização pintadas de branco em linhas pontilhadas e em linhas contínuas também brancas que acompanhavam o passeio e o canteiro central, no qual um jardim de flores vermelhas e luzes amarelas de postes mais baixos preenchiam o vazio entre os movimentos dos carros em direções opostas. Apenas ameaçava cair a tarde, mas já se podiam ver os primeiros globos de luz se acenderem ao longo do canteiro, especialmente porque era inverno e anoitecia mais cedo, além do fato de a noite durar insuportavelmente mais. Embora houvesse nuvens, como Isabela poderia descrever, havia estrelas prematuras no céu que ainda era azul claro. Débora quase fez um pedido quando avistou a primeira delas, mas enxergou uma outra pequena estrela, apenas um ponto de luz distante daquela primeira, e o pedido retornou da garganta ao centro do peito. A avenida, ao contrário das demais da cidade, não se interrompia em cruzamentos, apenas se pausava em sinais e em faixas de pedestre; era extensa e entrecortava toda a pequena cidade que havia crescido ao seu redor, com suas lojas, bancos, bancas, prédios, cinemas. Por ser sexta-feira, o movimento rotineiro estava mais alegre; os comerciantes baixavam as portas de suas lojas sorrindo e contando anedotas, os transeuntes diminuíam a rapidez dos passos e a atmosfera, por assim dizer, ficava inebriante, como se estivessem às vésperas de uma grande festividade. Das calçadas laterais, podia se ver as copas das várias árvores que se tocavam sobre o canteiro central, durante o percurso extenso e longínquo da avenida. O tronco nascia como uma insuperável natureza, chegando até mesmo a trincar o concreto das calçadas, e seus galhos iam se espalhando para cima e para os lados, primeiro sutis, mas depois se engrossavam e se sublinhavam, ficando cada vez mais finos à medida que se distanciavam do chão; quando a mancha verde de uma árvore de um lado da avenida tocava a mancha verde da outra árvore na outra calçada, um portal de sombra e folhas se formava, sob o qual, o prefeito atento, eventualmente, resolveu colocar pequenos bancos feitos também de concreto, nos quais cabiam duas ou três pessoas e onde se podia ler as propagandas das empresas dos seus familiares e comensais. O restaurante onde elas estavam se encontrava numa esquina entre um arco verde de duas árvores e um semáforo, sob o qual havia uma faixa de pedestre. Nas outras três esquinas havia uma loja de roupas com suas vitrines de vidro e modelos de plástico, um prédio moderno de quatro andares no qual um banco se instalara e uma pequena reentrância da calçada que se expandia como se fosse uma praça retangular, na qual havia um busto de homem e uma legenda ilegível pelos desenhos pixados dos jovens rebeldes da classe média. Nessa espécie de largo, iluminados por vários postes em disposição de passarela, semelhantes ao do canteiro central, havia quatro jardins circulares arquitetonicamente separados e ao redor desses, bancos que acompanhavam o círculo florido, com as já citadas propagandas coladas nos seus encostos. De onde Débora estava, numa espécie de sacada a céu aberto do restaurante, ela podia ver as pessoas gesticulando entre os diálogos, um homem que se precipitou sobre uma mulher, a qual recuou no banco, fugindo do rosto dele. Terminou o segundo copo da bebida para começar a falar:
- Achei estranho você me ligar quinta-feira à noite da sua casa, – disse pausadamente buscando a bolsa que estava dependurada na cadeira - se tivesse ligado do celular, do trabalho, tudo bem – e completou levando à pequena bolsa de mão à mesa-, mas você quase nunca fica em casa, muito menos às quintas-feiras e à noite! - quando terminou o discurso, já tinha o maço de cigarros e o isqueiro em mãos.
Isabela virou o rosto de lado, escondendo um sorriso em fuga, como numa pose próxima a de Vênus de Milo. Débora podia enxergar com a clareza da proximidade o risco do maxilar de Isabela, logo acima do pescoço. Era um rosto levemente quadrado, no qual uma linha geométrica cheia de ângulos saia do labirinto da orelha, se redescobrindo entre mechas de cabelo ruivo, curvava-se na mandíbula e caminhava solenemente até a pequena suspensão à altura do queixo, onde descansava no primeiro traço dos lábios que, embora não fossem carnudos, eram marcantes e, naqueles instantes, estavam separados pelos dentes que não se podia esconder.
- Estava encaixotando algumas coisas para a mudança. É incrível o tanto de inutilidades esquecidas que se pode encontrar num armário – disse rabiscando o forro da mesa com o palito da capivodka – e achei um perfume seu entre umas blusas minhas. Pensei que tinha lhe entregado, mas na confusão... – e moveu os ombros como se eximisse de uma culpa.
Débora franziu o cenho e recuou ligeiramente a cabeça, tomando uma distância para enquadrá-la numa visão maior. “Qual perfume?”, indagou. Isabela forçou o lábio inferior um pouco para fora e apenas balançou negativamente a cabeça.
- Não sei. Quando eu o retirava do meio das blusas, isso é, ele estava enrolado naquela minha blusa preta, se lembra? Pois bem, quando peguei a blusa, o frasco caiu no chão e se espatifou – Débora ouvia a explicação mais interessada em lembrar da blusa preta -. O resto do perfume que tinha derramou no tapete do meu quarto. Eu trouxe apenas a tampinha. Vê se você lembra do cheiro.
Isabela retirou do bolso da calça uma tampinha cúbica prateada com um furo no meio, no qual a outra parte da embalagem se encaixaria. Era pesada, como se fosse de metal, mas era feita de algo magnético, talvez um ímã, pois Isabela a usara como enfeite da sua geladeira por um tempo, entre pequenas réplicas de cachos de bananas e propagandas de farmácia e tele-entrega de comida chinesa, segurando uma foto contra a brancura limpa do eletrodoméstico. Antes de entregá-la a Débora, entretanto, levou-a até o nariz e lembrou com exatidão da foto que ela segurava. No retrato, também era junho, um outro junho menos frio, no inverno anterior; atrás dos dois vultos, um mar esverdeado e sem ondas maiores e um céu colorido em tons rosa e sem nuvens ao fim do dia; no espelho inquieto de água que o oceano fazia, o céu se refletia, se desmanchando em todas as cores na maré que trazia até a praia algumas algas flutuantes. Ao canto direito da foto, sobre o ombro felpudo de um casaco de frio, via-se o braço de terra da enseada que tentava abraçar um pedaço de mar para si. Isabela apertou, uma última vez, a tampinha do perfume quebrado nas mãos, antes de entregá-la a Débora.
Sobre a foto: originada do Site Olhares; autor: Paulo A.
- Lembra da primeira vez que a gente veio aqui? – Isabela permanecia com o sorriso diáfano, colocando o celular ao lado dos óculos e do copo, - não tinha aquele ambiente ali em cima, nem esse balcão enorme aqui do lado, mas as cadeiras eram as mesmas e as mesas continuam tão sujas quanto.
Débora tentou sorrir, mas apenas ensaiou um movimento de boca. Há quase dois anos, ela disse olhando para a avenida lá embaixo, parece que é mais recente quando você está por perto. Isabela consentiu com a cabeça, tornando a buscar o celular que, desta vez, não tocou. Apenas o abriu e brincou com as teclas, colocando-o entre o olhar de Débora e o seu. Demorou alguns minutos entre os barulhos eletrônicos e completou: “faz um ano, onze meses, cinco dias e quinze minutos”; bateu as duas partes do celular e devolveu-o à mesa. “Só posso ser tão específica porque o celular ainda é o mesmo”. “E o mesmo toque chato também”, Débora retorquiu com os dentes brancos à mostra. E, pela primeira vez na tarde, elas compartilharam o mesmo sorriso nostalgicamente doce e, assim, diminuíram a dimensão da mesa daquele restaurante.
A avenida que margeava o restaurante tinha pistas largas em suas duas mãos, o suficiente para caber três carros paralelos em sua dimensão de largura. Havia faixas de sinalização pintadas de branco em linhas pontilhadas e em linhas contínuas também brancas que acompanhavam o passeio e o canteiro central, no qual um jardim de flores vermelhas e luzes amarelas de postes mais baixos preenchiam o vazio entre os movimentos dos carros em direções opostas. Apenas ameaçava cair a tarde, mas já se podiam ver os primeiros globos de luz se acenderem ao longo do canteiro, especialmente porque era inverno e anoitecia mais cedo, além do fato de a noite durar insuportavelmente mais. Embora houvesse nuvens, como Isabela poderia descrever, havia estrelas prematuras no céu que ainda era azul claro. Débora quase fez um pedido quando avistou a primeira delas, mas enxergou uma outra pequena estrela, apenas um ponto de luz distante daquela primeira, e o pedido retornou da garganta ao centro do peito. A avenida, ao contrário das demais da cidade, não se interrompia em cruzamentos, apenas se pausava em sinais e em faixas de pedestre; era extensa e entrecortava toda a pequena cidade que havia crescido ao seu redor, com suas lojas, bancos, bancas, prédios, cinemas. Por ser sexta-feira, o movimento rotineiro estava mais alegre; os comerciantes baixavam as portas de suas lojas sorrindo e contando anedotas, os transeuntes diminuíam a rapidez dos passos e a atmosfera, por assim dizer, ficava inebriante, como se estivessem às vésperas de uma grande festividade. Das calçadas laterais, podia se ver as copas das várias árvores que se tocavam sobre o canteiro central, durante o percurso extenso e longínquo da avenida. O tronco nascia como uma insuperável natureza, chegando até mesmo a trincar o concreto das calçadas, e seus galhos iam se espalhando para cima e para os lados, primeiro sutis, mas depois se engrossavam e se sublinhavam, ficando cada vez mais finos à medida que se distanciavam do chão; quando a mancha verde de uma árvore de um lado da avenida tocava a mancha verde da outra árvore na outra calçada, um portal de sombra e folhas se formava, sob o qual, o prefeito atento, eventualmente, resolveu colocar pequenos bancos feitos também de concreto, nos quais cabiam duas ou três pessoas e onde se podia ler as propagandas das empresas dos seus familiares e comensais. O restaurante onde elas estavam se encontrava numa esquina entre um arco verde de duas árvores e um semáforo, sob o qual havia uma faixa de pedestre. Nas outras três esquinas havia uma loja de roupas com suas vitrines de vidro e modelos de plástico, um prédio moderno de quatro andares no qual um banco se instalara e uma pequena reentrância da calçada que se expandia como se fosse uma praça retangular, na qual havia um busto de homem e uma legenda ilegível pelos desenhos pixados dos jovens rebeldes da classe média. Nessa espécie de largo, iluminados por vários postes em disposição de passarela, semelhantes ao do canteiro central, havia quatro jardins circulares arquitetonicamente separados e ao redor desses, bancos que acompanhavam o círculo florido, com as já citadas propagandas coladas nos seus encostos. De onde Débora estava, numa espécie de sacada a céu aberto do restaurante, ela podia ver as pessoas gesticulando entre os diálogos, um homem que se precipitou sobre uma mulher, a qual recuou no banco, fugindo do rosto dele. Terminou o segundo copo da bebida para começar a falar:
- Achei estranho você me ligar quinta-feira à noite da sua casa, – disse pausadamente buscando a bolsa que estava dependurada na cadeira - se tivesse ligado do celular, do trabalho, tudo bem – e completou levando à pequena bolsa de mão à mesa-, mas você quase nunca fica em casa, muito menos às quintas-feiras e à noite! - quando terminou o discurso, já tinha o maço de cigarros e o isqueiro em mãos.
Isabela virou o rosto de lado, escondendo um sorriso em fuga, como numa pose próxima a de Vênus de Milo. Débora podia enxergar com a clareza da proximidade o risco do maxilar de Isabela, logo acima do pescoço. Era um rosto levemente quadrado, no qual uma linha geométrica cheia de ângulos saia do labirinto da orelha, se redescobrindo entre mechas de cabelo ruivo, curvava-se na mandíbula e caminhava solenemente até a pequena suspensão à altura do queixo, onde descansava no primeiro traço dos lábios que, embora não fossem carnudos, eram marcantes e, naqueles instantes, estavam separados pelos dentes que não se podia esconder.
- Estava encaixotando algumas coisas para a mudança. É incrível o tanto de inutilidades esquecidas que se pode encontrar num armário – disse rabiscando o forro da mesa com o palito da capivodka – e achei um perfume seu entre umas blusas minhas. Pensei que tinha lhe entregado, mas na confusão... – e moveu os ombros como se eximisse de uma culpa.
Débora franziu o cenho e recuou ligeiramente a cabeça, tomando uma distância para enquadrá-la numa visão maior. “Qual perfume?”, indagou. Isabela forçou o lábio inferior um pouco para fora e apenas balançou negativamente a cabeça.
- Não sei. Quando eu o retirava do meio das blusas, isso é, ele estava enrolado naquela minha blusa preta, se lembra? Pois bem, quando peguei a blusa, o frasco caiu no chão e se espatifou – Débora ouvia a explicação mais interessada em lembrar da blusa preta -. O resto do perfume que tinha derramou no tapete do meu quarto. Eu trouxe apenas a tampinha. Vê se você lembra do cheiro.
Isabela retirou do bolso da calça uma tampinha cúbica prateada com um furo no meio, no qual a outra parte da embalagem se encaixaria. Era pesada, como se fosse de metal, mas era feita de algo magnético, talvez um ímã, pois Isabela a usara como enfeite da sua geladeira por um tempo, entre pequenas réplicas de cachos de bananas e propagandas de farmácia e tele-entrega de comida chinesa, segurando uma foto contra a brancura limpa do eletrodoméstico. Antes de entregá-la a Débora, entretanto, levou-a até o nariz e lembrou com exatidão da foto que ela segurava. No retrato, também era junho, um outro junho menos frio, no inverno anterior; atrás dos dois vultos, um mar esverdeado e sem ondas maiores e um céu colorido em tons rosa e sem nuvens ao fim do dia; no espelho inquieto de água que o oceano fazia, o céu se refletia, se desmanchando em todas as cores na maré que trazia até a praia algumas algas flutuantes. Ao canto direito da foto, sobre o ombro felpudo de um casaco de frio, via-se o braço de terra da enseada que tentava abraçar um pedaço de mar para si. Isabela apertou, uma última vez, a tampinha do perfume quebrado nas mãos, antes de entregá-la a Débora.
Sobre a foto: originada do Site Olhares; autor: Paulo A.