Tuesday, March 25, 2008

Sob o céu de Gibeon (continuação)


Porque uma conversava deselegantemente ao telefone ou porque a outra brincava com o palitinho de picolé no fundo do novo copo de caipirinha, revolvendo o açúcar branco entre as pedras de gelo e as rodelas verdes de limão, ou porque estavam tão distantes – embora estivessem centímetros uma da outra, poderiam estar em mesas separadas. Mas, naquela tarde de sexta-feira de em julho friorento, elas se colocaram e se encontraram no mesmo lugar, cada uma do seu lado da mesma mesa. Isabela terminou a ligação, retirando os óculos de sol, dobrando suas hastes e colocando-o ao lado do seu copo, ainda cheio, de caipvodka. “Eu te ligo de volta” e ela fechou o flip do celular; mostrou-o a Débora, balançando a cabeça negativamente de um lado para outro, porém com um sorriso calmo nos lábios. Isabela não entendeu quando a outra parou de remexer o palito no copo e fitou, silenciosa, primeiro o celular desligado e, levantando a sobrancelha esquerda, fitou-a também. Débora abandonou o laborioso exercício de dissolver o açúcar e recostou-se no assento da cadeira, apoiando seus ombros na proteção de madeira. Entrelaçou os dedos e apoiou-os sobre o abdômen.

- Lembra da primeira vez que a gente veio aqui? – Isabela permanecia com o sorriso diáfano, colocando o celular ao lado dos óculos e do copo, - não tinha aquele ambiente ali em cima, nem esse balcão enorme aqui do lado, mas as cadeiras eram as mesmas e as mesas continuam tão sujas quanto.

Débora tentou sorrir, mas apenas ensaiou um movimento de boca. Há quase dois anos, ela disse olhando para a avenida lá embaixo, parece que é mais recente quando você está por perto. Isabela consentiu com a cabeça, tornando a buscar o celular que, desta vez, não tocou. Apenas o abriu e brincou com as teclas, colocando-o entre o olhar de Débora e o seu. Demorou alguns minutos entre os barulhos eletrônicos e completou: “faz um ano, onze meses, cinco dias e quinze minutos”; bateu as duas partes do celular e devolveu-o à mesa. “Só posso ser tão específica porque o celular ainda é o mesmo”. “E o mesmo toque chato também”, Débora retorquiu com os dentes brancos à mostra. E, pela primeira vez na tarde, elas compartilharam o mesmo sorriso nostalgicamente doce e, assim, diminuíram a dimensão da mesa daquele restaurante.

A avenida que margeava o restaurante tinha pistas largas em suas duas mãos, o suficiente para caber três carros paralelos em sua dimensão de largura. Havia faixas de sinalização pintadas de branco em linhas pontilhadas e em linhas contínuas também brancas que acompanhavam o passeio e o canteiro central, no qual um jardim de flores vermelhas e luzes amarelas de postes mais baixos preenchiam o vazio entre os movimentos dos carros em direções opostas. Apenas ameaçava cair a tarde, mas já se podiam ver os primeiros globos de luz se acenderem ao longo do canteiro, especialmente porque era inverno e anoitecia mais cedo, além do fato de a noite durar insuportavelmente mais. Embora houvesse nuvens, como Isabela poderia descrever, havia estrelas prematuras no céu que ainda era azul claro. Débora quase fez um pedido quando avistou a primeira delas, mas enxergou uma outra pequena estrela, apenas um ponto de luz distante daquela primeira, e o pedido retornou da garganta ao centro do peito. A avenida, ao contrário das demais da cidade, não se interrompia em cruzamentos, apenas se pausava em sinais e em faixas de pedestre; era extensa e entrecortava toda a pequena cidade que havia crescido ao seu redor, com suas lojas, bancos, bancas, prédios, cinemas. Por ser sexta-feira, o movimento rotineiro estava mais alegre; os comerciantes baixavam as portas de suas lojas sorrindo e contando anedotas, os transeuntes diminuíam a rapidez dos passos e a atmosfera, por assim dizer, ficava inebriante, como se estivessem às vésperas de uma grande festividade. Das calçadas laterais, podia se ver as copas das várias árvores que se tocavam sobre o canteiro central, durante o percurso extenso e longínquo da avenida. O tronco nascia como uma insuperável natureza, chegando até mesmo a trincar o concreto das calçadas, e seus galhos iam se espalhando para cima e para os lados, primeiro sutis, mas depois se engrossavam e se sublinhavam, ficando cada vez mais finos à medida que se distanciavam do chão; quando a mancha verde de uma árvore de um lado da avenida tocava a mancha verde da outra árvore na outra calçada, um portal de sombra e folhas se formava, sob o qual, o prefeito atento, eventualmente, resolveu colocar pequenos bancos feitos também de concreto, nos quais cabiam duas ou três pessoas e onde se podia ler as propagandas das empresas dos seus familiares e comensais. O restaurante onde elas estavam se encontrava numa esquina entre um arco verde de duas árvores e um semáforo, sob o qual havia uma faixa de pedestre. Nas outras três esquinas havia uma loja de roupas com suas vitrines de vidro e modelos de plástico, um prédio moderno de quatro andares no qual um banco se instalara e uma pequena reentrância da calçada que se expandia como se fosse uma praça retangular, na qual havia um busto de homem e uma legenda ilegível pelos desenhos pixados dos jovens rebeldes da classe média. Nessa espécie de largo, iluminados por vários postes em disposição de passarela, semelhantes ao do canteiro central, havia quatro jardins circulares arquitetonicamente separados e ao redor desses, bancos que acompanhavam o círculo florido, com as já citadas propagandas coladas nos seus encostos. De onde Débora estava, numa espécie de sacada a céu aberto do restaurante, ela podia ver as pessoas gesticulando entre os diálogos, um homem que se precipitou sobre uma mulher, a qual recuou no banco, fugindo do rosto dele. Terminou o segundo copo da bebida para começar a falar:

- Achei estranho você me ligar quinta-feira à noite da sua casa, – disse pausadamente buscando a bolsa que estava dependurada na cadeira - se tivesse ligado do celular, do trabalho, tudo bem – e completou levando à pequena bolsa de mão à mesa-, mas você quase nunca fica em casa, muito menos às quintas-feiras e à noite! - quando terminou o discurso, já tinha o maço de cigarros e o isqueiro em mãos.

Isabela virou o rosto de lado, escondendo um sorriso em fuga, como numa pose próxima a de Vênus de Milo. Débora podia enxergar com a clareza da proximidade o risco do maxilar de Isabela, logo acima do pescoço. Era um rosto levemente quadrado, no qual uma linha geométrica cheia de ângulos saia do labirinto da orelha, se redescobrindo entre mechas de cabelo ruivo, curvava-se na mandíbula e caminhava solenemente até a pequena suspensão à altura do queixo, onde descansava no primeiro traço dos lábios que, embora não fossem carnudos, eram marcantes e, naqueles instantes, estavam separados pelos dentes que não se podia esconder.

- Estava encaixotando algumas coisas para a mudança. É incrível o tanto de inutilidades esquecidas que se pode encontrar num armário – disse rabiscando o forro da mesa com o palito da capivodka – e achei um perfume seu entre umas blusas minhas. Pensei que tinha lhe entregado, mas na confusão... – e moveu os ombros como se eximisse de uma culpa.

Débora franziu o cenho e recuou ligeiramente a cabeça, tomando uma distância para enquadrá-la numa visão maior. “Qual perfume?”, indagou. Isabela forçou o lábio inferior um pouco para fora e apenas balançou negativamente a cabeça.

- Não sei. Quando eu o retirava do meio das blusas, isso é, ele estava enrolado naquela minha blusa preta, se lembra? Pois bem, quando peguei a blusa, o frasco caiu no chão e se espatifou – Débora ouvia a explicação mais interessada em lembrar da blusa preta -. O resto do perfume que tinha derramou no tapete do meu quarto. Eu trouxe apenas a tampinha. Vê se você lembra do cheiro.

Isabela retirou do bolso da calça uma tampinha cúbica prateada com um furo no meio, no qual a outra parte da embalagem se encaixaria. Era pesada, como se fosse de metal, mas era feita de algo magnético, talvez um ímã, pois Isabela a usara como enfeite da sua geladeira por um tempo, entre pequenas réplicas de cachos de bananas e propagandas de farmácia e tele-entrega de comida chinesa, segurando uma foto contra a brancura limpa do eletrodoméstico. Antes de entregá-la a Débora, entretanto, levou-a até o nariz e lembrou com exatidão da foto que ela segurava. No retrato, também era junho, um outro junho menos frio, no inverno anterior; atrás dos dois vultos, um mar esverdeado e sem ondas maiores e um céu colorido em tons rosa e sem nuvens ao fim do dia; no espelho inquieto de água que o oceano fazia, o céu se refletia, se desmanchando em todas as cores na maré que trazia até a praia algumas algas flutuantes. Ao canto direito da foto, sobre o ombro felpudo de um casaco de frio, via-se o braço de terra da enseada que tentava abraçar um pedaço de mar para si. Isabela apertou, uma última vez, a tampinha do perfume quebrado nas mãos, antes de entregá-la a Débora.



Sobre a foto: originada do Site Olhares; autor: Paulo A.

Tuesday, March 04, 2008

Sob o céu de Gibeom


“(Josué 10:12) - Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor deu os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse na presença dos israelitas: Sol, detém-te em Gibeom, e tu, lua, no vale de Ajalom.

(Josué 10:13) - E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Isto não está escrito no livro de Jasher? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro.

(II Reis 20:11) - Então o profeta Isaías clamou ao Senhor; e fez voltar a sombra dez graus atrás, pelos graus que tinha declinado no relógio de sol de Acaz.”

Isabela achava que iria chover em breve; as nuvens se amontoavam no lado oeste do céu da cidade e, embora completamente brancas, eram muitas; por isso, Isabela as olhava com a astúcia de quem sabe que aquele branco se converteria, pela noite, em cinza, depois laranja e se precipitaria sobre os telhados das casas, escorrendo pelas calhas e bueiros. Emburrava-se e não compartilhava sua opinião com Débora sobre o tempo naquela tarde; mais do que isso: acreditava que ninguém, muito menos Débora, gostaria de ouví-la. Os cabelos presos no alto da cabeça começavam a incomodar e ela constantemente os reajeitava, balançando, assim, as mechas de cabelo ruivo pintado de um lado para o outro, num movimento largo de desconforto. Assim que viu a primeira camisa social branca adornada por uma gravata borboleta preta passar, levantou o braço no ar e ergueu o indicador.

O bar começava a encher, mas elas haviam chegado cedo e pegaram uma das melhores mesas, com vista para a avenida movimentada. Os carros iam se estacionando ao lado do passeio e deles surgiam outros rostos, outras roupas, outras vozes. Umas caminhonetes mais à frente, quase na esquina, revezavam entre si em quem colocava o som mais alto; com o ressoar dos altos falantes, se podia sentir o corpo entrando em ressonância com as notas mais graves dos funks e axés que eram espirrados para fora das caixas de som, instaladas nas carrocerias. O garçom, sorridente, se aproximou da mesa segurando a bandeja metálica junto ao avental preto, à altura do peito. Lançou olhares simpáticos às duas mulheres que se vestiam tão sobriamente e se encontravam sentadas tão distantes uma da outra. Ele achou engraçado, pois duas ou mais mulheres sentadas numa mesa de um bar como aquele, em plena tarde de sexta-feira, geralmente tocam-se nos braços repousados sobre as mesas e cochicham, nos ouvidos das outras, risadinhas e frases marcadas de ironia. Não elas duas. Desfazendo-se do sorriso, ele baixou a bandeja e revelou um cardápio sobre a circunferência metálica. Ofereceu-o a Isabela, porque ela lhe parecia mais velha, talvez pelo batom vermelho quase grosseiro que lhe sujava os lábios ou, talvez, apenas porque por trás daqueles óculos de sol ele imaginasse rugas escondidas. Tomou do bolso um bloco de papel com a beirada vermelha de adesivo, como desses que se vendem barato pelas papelarias. Da orelha, buscou a caneta azul sem tampa e esperou silencioso que elas fizessem o pedido. Mordia a ponta da Bic quando elas terminaram de fazer os pedidos; repetiu “duas caipvodkas com açúcar e uma travessa de frios”, num tom audível apenas para os três. Ele se despediu com um sorriso de boca fechada acima do queixo mal barbeado, levando a bandeja debaixo do braço.

Débora tentava fazer origame com os guardanapos de papel, enquanto, na verdade, ouvia a conversa dos vizinhos de mesa. Qualquer desculpa para evitar a desatenção calculada que Isabela fingia repousar sobre ela, por trás dos óculos, escondida, olhando para além da silhueta inclinada sobre o saleiro. As pontas dos cabelos curtos de Débora, cortados logo abaixo da orelha, raspavam, suave, sobre suas bochechas e cócegas lhe faziam levar a mão ao rosto. Insistia em tentar prender o cabelo atrás das orelhas, mas logo que baixava o olhar para a mesa, a fim de continuar o passatempo inútil de construir um barco de papel com os guardanapos ou equilibrar o saleiro sobre o porta-palitos, pequenos fios iam se desprendendo, contornando a beirada da orelha, até que grande número de fios pretos se rebelasse e voltasse a esbarrar na bochecha. Seus cotovelos, com certo asco, não se encostavam no pano de mesa vermelho sujo de farelos de torrada, palitos de dente e guardanapos amassados e ela mantinha os cílios longos e pintados à frente dos olhos semi-cerrados, evitando qualquer eye contact com Isabela que, embora fitasse o céu a oeste da cidade, com suas nuvens brancas e suspeitas, passeava o olhar pelas sobrancelhas quase grossas de Débora, uma vez que os olhos estavam escondidos atrás dos cílios e das pálpebras tímidas.

- Vai chover – Isabela lançou as palavras para ar, como fumaça de cigarro, apertando os olhos.

Débora ainda demorou alguns segundos conferindo a última dobradura e passando a ponta da unha sobre o guardanapo, mas olhou para cima, para o céu no lado leste da cidade, que ficava à sua frente e às costas da outra.

- Acho que não... – e, antes de se voltar para o projeto de barco que começara, parou alguns instantes. Observava os lábios de Isabela que, embora pintados, estavam desenhados com pequenas trincas verticais, como se estivessem secos. E estavam. Olhava com precisão, como se algo estivesse prestes a saltar daquela boca. O garçom se aproximou e cortou a visão de Débora com o movimento de seu braço até a mesa, onde depositou os copos de caipvodka, um por vez. Isabela rapidamente tomou o primeiro gole, molhando os lábios com a vodka quase pura e, só então, com o movimento brusco de Isabela foi que Débora deu atenção ao seu copo. Tomou o palitinho de madeira entre os dedos e remexeu o fundo do copo, onde montes de açúcar branco começavam a se dissolver na transparência da bebida.

O telefone de Isabela tocou e fez vibrar a mesa, provocando ondas irregulares sobre a superfície da vodka de Débora. Assim que o telefone atendeu, o copo se esvaziou. Restaram apenas cubos de gelos mal derretidos e rodelas de limão que ainda resguardavam sabor. Passou as mãos sobre os cabelos e, durante alguns instantes, eles se mantiveram suspensos, acima das orelhas; mas, rapidamente desabaram sobre as bochechas, roçando ainda mais contra a pele clara de Débora. O “alô” da outra trincou a atmosfera silenciosa, ao mesmo tempo em que ela levantou o indicador no ar e, atendida pelo garçom, apontou para o copo quase vazio.

Em neon

O que se segue são, mais do que correspondências, explicações e epifanias. Explicações, aliás, parcas e complicadas que nem explicam nada. Ao leitor, recomendo não ler, sinceramente.

14/11/07

Confesso não saber fazer uma quase dissertação sobre teu nome. "Ana" é um nome comum, embora desperte (pres)sentimentos distintos em diferentes pessoas - Ana quase sempre é um pre(con)texto, Ana nunca é neutra, é lembrança ou saudade, ódio ou remorso, paixão ou desilusão. Posso afirmar que Ana é um personagem-autor: jamais saberia se desvencilhar do ato de escrever sobre alguém/algo, mas, como qualquer escritor, também não conseguiria, dentro de seus dizeres-confissões, não falar de si mesma. Então, Ana nunca é singular, é sempre pluralidade, a unidade destrinchada em várias realidades. Clarice escreveu, sim, sobre Ana e o título do conto, fazendo jus ao nome da personagem, também é "simples", breve e facilmente silabado, mas infinitamente maior do que o significante: "Amor". Aqui lhe transcrevo um trecho do conto de Lispector:

"No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado."

Mas, como leitora-escritora-personagem-contexto (gostei muito de ler suas palavras "hifenizadas". Como Freud teorizou, é um unheimliche: estranhamente familiar, pois eu também faço muito isso), não poderia não aproveitar a deixa e falar do conto de Caio F. que mais se aproxima de uma Ana qualquer, mas que também é a minha Ana (já não sei responder se é personagem ou autor): "Sem Ana, Blues". Você me ofereceu o poema "Mapa"; eu lhe ofereço o meu conto favorito. Podia colocar aqui o link, mas a procura pela Ana do Caio lhe fará bem, porque o conto começará na procura por ele(a) (conto ou personagem-Ana), já que o próprio personagem da obra procura por Ana (e assim, eu te coloco menos como leitora e mais como personagem).

Teu nome (andei procurando) de origem anglo-saxônica que significa "é dotada de um temperamento impulsivo, que não cede diante de nenhum tipo de pressão. Luta para alcançar suas metas. Sempre investe com sabedoria e precaução". Então, mais uma vez fazendo o uso das interrogações (que já são personagens dos nossos "depoimentos"), eu indago se você é o sujeito da sentença acima. Pela maneira como se sentiu estranhamente familiar com as minhas palavras sobre você - personagem ou autora, não importa -, acredito que o temperamento impulsivo é apenas adendo da bagunça transcendente, da sua não linearidade que nos traz até esta exata linha. Posso concordar com a sabedoria, ou melhor dito, posso admirar-concordar com a sabedoria. Sobre a precaução, deixarei para você mesma me falar.

Sobre a sua manhã chuvosa... gostaria de conhecer esta Ana. A filha e o pretexto do conto ou do eu-lírico. Acredito que, lendo -o, conhecerei um pouco mais de você: personagem-e-autora. O aparecimento da Ana, há dois ou três anos, é mais uma das realidades das Ana's: destino ou coincidência. Não se preocupe. Sempre responderei suas interrogações. Algumas não precisam de respostas, porque no exato momento em que são construídas, vislumbram a resposta dentro delas mesmas (como um autor que não necessita entender um personagem, já que ele é criação e reflexo próprio).

Não sei dizer se sou realmente pisciniana ou aquariana. Nasci no limiar dos signos, nas últimas horas do dia 19 de fevereiro em que o universo abandona a solidão de Aquário e adentra a incompreensão de Peixes. Ascendente em Escorpião é fato. Sobre a bela cena da sua vida, eu poderia, aqui, retomar a nossa discussão sobre personagem-autor, e utilizar da metáfora da água caindo dentro de mais água, ou seja, o escritor se diluindo no personagem (ambos são a mesma matéria, água, logo são o mesmo princípio-fim). Todo autor se precipita sobre o personagem, como toda chuva cai sobre um lago numa manhã cinzenta e nublada. É sempre nublado o ato de escrever. Sabe-se que se escreve-chove, mas nunca se sabe ao certo a vazão das letras e dos lagos. Bom, acho que abusei demais.

Será sintonia astral? Bom, não sei. Compartilhamos uma paixão. Mais do que isso: compartilhamos perguntas.

É. Talvez seja uma sintonia astral.

Tenha uma boa semana, com manhãs chuvosas e ensolaradas.

26/01/08

Eu demorei muito, eu sei, para responder. Mas, foram os contratempos da vida, principalmente. Mas, agora, que essa fase veio ao fim, eu reservo esses minutos para escrever com calma a alguém com quem eu quero tanto conversar e, especialmente, alguém para o qual não se pode simplesmente escrever em contratempos.

Como anda a bagunça transcendente? Virou "quadrilha" agora ou se organizou numa "quadrilha"? No nosso último contato - se você assim me permite colocar o seu último "testimonial" - você falava sobre a vida ser um "carrossel bêbado" e falava que essa frase surgia em neon na sua mente. Achei engraçado você dizer isso - um sentimento unheimliche, como Freud disse -, exatamente porque certos momentos, na minha vida, certos pensamentos vinham escritos com letras luminosas em neon. O próprio layout do meu blog é feito em luzes azuis de neon. Curiosa fico para saber do neon em você. Quero que você sempre escreva sem se preocupar. E escreva sempre. O que nos aproximou foi o acaso (ou outro caso qualquer) e o próprio acaso é algo espontâneo, ainda que possa ser premeditado.

Não ser inteira seria negar os laços que estamos construindo. Por isso, seja inteira como eu também serei (parodiando Lispector em "perca-se como eu me perdi").

Você faz Letras. Como é fazer Letras? Em que você pretende se especializar? Ainda penso em fazer Letras, como um bem para mim mesma. Medicina é a esposa; Letras a amante.

Sobre os três objetivos da sua vida. Falar espanhol é interessante, é uma das línguas mais faladas no mundo (além de ser charmoso). Mas, eu tenho preferências pelo inglês e pelo italiano. Sobre o violão, eu endosso o objetivo. Toco violão desde os cinco anos e não há nada mais terapêutico do que passar horas com ele, os dedos já calejados nem reclamam mais. Você tem preferência por algum estilo ou banda, quando toca? At last, but not least, nunca fui à Petrópolis.

Como mineira, só coloquei os pés no estado do Rio, até hoje, em Cabo Frio. O que em Petrópolis que te faz querer ter uma casa lá? Gostaria de saber mais da garota parabólica. De como foi o Natal, o Reveillon, a correria que deve estar enfrentando nesse começo de ano. Queria saber, ainda, porque a garota parabólica deu uma das mãos na quadrilha, mas ficou com a outra mão solta no ar: "quae ardebat neminem". Queria que nossa distância não fosse mesmo separabólica e, se precisar de uma outra mão, para dançar a quadrilha, em latim, espanhol ou francês, cá estou. Por isso, lhe ofereço meu e-mail, caso algum dia, você possa mandar alguma coisa, dividir uma bagunça transcendente que toma contornos literários, idéias que giram no carrossel da vida, ou mesmo sem motivo algum, apenas para saber que está dado o passo.

Hasta la vista!

(sem data)

Bagunça transcendente define mais do que nunca a minha vida no momento! Trabalhando muito-muito-muito-muito! Só vou ter folga depois do Natal...

“A vida é um carrossel bêbado”, um amigo poeta disse-me uma vez... E desde então, sempre que eu fico de ressaca ou quando a vida se mostra loucamente cíclica ou quando tudo é novo de novo essa frase surge em néon em minha mente. Queria escrever com mais tempo, com mais cuidado, mas acho que ser inteira talvez nos aproxime mais do que tentar sempre medir tudo o que eu escrevo, com a busca por uma perfeição inexistente de quem faz um poema. Faço Letras. Pretendo me formar no bacharelado no ano que vem. Trabalho numa livraria. Adoro trabalhar com livros!

Falando em língua, acho espanhol um idioma lindíssimo! Li um livro uma vez (travessuras de menina má, do Mário Vargas Lhosa) em que o objetivo de vida do protagonista era morar em Paris. Posso dizer que três dos meus objetivos de vida são: aprender espanhol, dominar completamente o meu violão e ter uma casa em Petrópolis. Gosto de várias formas de arte e de seus diferentes tipos de linguagem. Gosto de dominar linguagens... de aprender coisas novas, de viver coisas novas... posso dizer que o novo me assusta e me encanta. Fiquei curiosa para saber quais serão os objetivos de vida da senhorita...

Garota parabólica... não conhecia, mas já passei a conhecer...

– Então...Proponho um brinde a nossa distancia não separabólica!

Tudo de bom para você, menina-Ana!

03/03/08

"Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite, sobretudo, o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.Juro por Deus, que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão.Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral.Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma."

Como uma personagem Clarice-Ana em um intenso processo de aprendizagem... sinto-me assim. Ainda procuro equilíbrio entre a busca pelo melhor que posso ser e a aceitação do que sou. Equilíbrio entre a vontade e o que a contraria. Se render a uma vontade, fazer acontecer ou esperar que o universo siga o seu ritmo sem insensatas interferências ? Bagunça transcendente, carrossel bêbado, quadrilha... procuro sempre em vão desatar nós de fios invisíveis. Eis o que me lança nos becos da literatura. Eis o motivo pelo qual eu faço Letras.

Compartilhamos o pensar/sentir em néon e os contratempos da vida que resultam em longos espaços entre um escrito e outro. Confesso que só agora começo a me recuperar do trauma de guerra do período de vendas de livros didáticos. Período do ano sem nenhuma poesia para mim. Um mar de problemas! Tenho planos de fazer mestrado em literatura portuguesa. Pessoa, Florbela, Cesário Verde... Adoraria estudá-los mais! Gosto de tocar o que costuma ser rotulado como MPB: Kid abelha, Jorge Vercilo, Leoni, Cazuza, Djavan, Paulinho Moska... mas não posso dizer que toco sem me sentir culpada, já que a minha mão direita não colabora muito com a esquerda.

Fiquei curiosa para conhecer o seu blog... Menina-Ana que tem como amante a literatura, que decifra o que eu escrevo em latim e ainda toca violão... Um dia eu gostaria muito de conhecer os seus defeitos( Claro, se houver algum...).Creio que se um dia eu chegar a conhecê-los, será por termos alcançado uma intimidade própria das pessoas que se conhecem bem e se gostam e se respeitam ainda assim. Adorei a sua ultima mensagem! Sempre é muito bom receber mensagens suas, mas a última foi de uma delicadeza rara. Pena que você não fez prova aqui para o Rio! Ia adorar encontrar-te acaso em um dos campus...

São três e vinte e nove da manhã... peço desculpas pelos tropeços de coesão e coerência. Comprei finalmente “Morangos Mofados” do Caio e não pude deixar de te escrever. Que você tenha uma semana linda!

Tudo de bom, Ana! Com sincero carinho,

04/03/08

"Só depois desse primeiro momento, nenhum segundo, nem uma fatia mínima de tempo: um instante ínfimo em sua pequenez, máximo na sua amplitude e incompreensão, porque só o incompreensível é infinito -só depois desse primeiro momento é que te dobrarias para ti mesmo, a palavra latejando na memória, no corpo inteiro, nas mãos contidas, e te perguntarias lúcido -aéreo? Alado, talvez. Pensarias outras palavras, buscando já sonoridades, ressonâncias, ritmos, mas nenhuma delas, por mais lapidada que fosse, seria maior que aquela primeira. Nenhuma. Todo perdido dentro do nascido involuntário dentro de ti caminharias confuso pisando o cascalho." (Caio)

Fiquei procurando a palavra. Procurei a minha, a da Clarice, a da Lygia, do García, mas só a do Caio caiu. E só veio, assim, porque até ela também não se encontra. Queria dizer “obrigada”; pelas palavras, pela delicada raridade que é você, pelo momento em que me mandou uma coisa que eu precisava ter. Você nem sabe, provavelmente não irá saber, mas fez um bem muito maior para mim. Nem dizendo isso, nem lhe deixando ciente do bem, você não conseguiria vê-lo todo, nas suas expansões menos prováveis.

Acho que me atrevo a dizer que entendo um pouco do seu carrossel bêbado, da quadrilha de mãos vazias, da bagunça transcendente. É a eterna guerra entre o caos e o cosmos. O poder revolucionário e superador do caos contra a aceitação e a paz seqüestrada do cosmos. Tomara que nenhum deles nunca vença. É o abismo entre eles que, creio, nos leva para o que é o melhor de nós, o único meio de viver.

A notícia de que você comprou “Morangos Mofados” é um bom sintoma de que você está superando o mar didático no qual ficou mergulhada.

É sua mão direita que não colabora? Diferente... geralmente os “violeiros” reclamam mais da esquerda. Mas, é uma boa notícia. Dando mais atenção para ela significa que teremos bons dedilhados vindo do seu violão, em breve, seja tocando Djavan ou Vercilo.

Meus defeitos estão por aí e acho que só eles medem o que eu realmente sou. Pelo que eu perco com um defeito, o que fica ou resta de mim é sempre essencial, quase destilado. Mas, se você continuar falando tão bem assim de mim, é bem possível que eles diminuam. Brincadeiras à parte, se a intimidade um dia chegar, ela será tão bem-vinda como você sempre é.

Como na música do Paralamas: “como é importante o que o vento traz ao acaso/ não vê que a casualidade é uma força inesgotável”. Que não seja num campus... seja em Petrópolis, com neblina, frio e lareira.

Uma semana menos didática para você.

Com carinho,