Thursday, January 24, 2008

Três tempos

"Essa semana eu te encontrei
Você estava tão bem
Nem parece que a pouco tempo atrás
Fomos algo muito além
Seu telefone, a minha voz
Tudo, agora, é diferente
Um quarto frio, cama, cartas, lençóis
E a decisão é permanente
Estamos livres
Hoje a noite eu vou sair
Quero dançar
Estamos livres
Só vou chegar após o sol raiar
Estamos livres
Hoje a noite vou sair
Quero dançar.
Preciso confessar:
Queria tudo de volta
E o coração, no seu lugar
Queria tudo de volta no seu lugar"


(Anjos de Metrópole - Três Minutos Pra Voltar)

Antes que ela desligasse ou mesmo antes que eu desligasse, naqueles três minutos que restavam antes que a ligação viesse ao fim, antes que eu jamais pudesse novamente ligar para ela com aquela mesma intensidade, sem dizer alô, sem dizer tchau, apenas despedindo com alguns silêncios, apenas cumprimentando com uma risada, apenas dizendo que sentia saudades com metáforas escandalosamente discretas, antes daqueles três minutos finais, eu deveria ter dito muitas coisas. Antes de deitar o telefone azul no seu aparelho também azul, antes de sair de casa batendo a porta atrás de mim, antes de andar de carro pelas ruas ocas da cidade em plena madrugada, antes de perdê-la e me perder, deveria ter dito as coisas que eu não calculava, coisas que eu não saberia escrever, deixar nas folhas brancas de um livro como dedicatória ou num guardanapo como lembrança para sua gaveta de recordações, coisas que talvez ela esqueceria com o passar dos dias, coisas que não caberiam num cartão postal, coisas que não se sustentariam no painel de um celular e nem na página de um blog: coisas do além de mim. Deveria ter dito que durante muito tempo o meu silêncio foi o meu crime velado; a gaveta onde tudo ficou guardado, se remexendo, se debatendo, desestabilizando o resto todo do móvel, coisas que aprenderam a dizer não dizendo, que aprenderam a cantar com rimas. E ali, com a mão no puxador da gaveta, sem ser capaz de movimentá-lo, apenas sentindo o tremor da sua inquietude nos meus dedos, os mesmos que, então, apertaram o botão de desligar do telefone. Deveria ter corrido mais, pegado um ônibus, um avião, outro ônibus, um táxi. Naqueles três minutos contados no visor do identificador de chamadas, não deveria haver o silêncio, não novamente o silêncio perturbador de quem se cala por não saber o que dizer ou não saber como dizer. Queria ter dito que, naqueles últimos três dias e nos três dias antes daqueles e nos três dias anteriores a esses, o silêncio que ela conhecia pela mudez da ligação tomou contornos diários e se disfarçava na leitura de um livro ou na exibição de um filme. Nem sempre em choro. O choro só aparecia no banho quando a água da lágrima se fundia a água dos minúsculos buracos da placa crivada do chuveiro. Nunca deixou de ser silêncio: antes e depois. Queria ter dito que errei algumas vezes pela pressa infantil de acertar poucas vezes, pela saudade que não suportava a microdistância longínqüa, pela insensatez da saudade daquilo que estava por vir, pela saudade que via, em tudo o que é dourado, uma sombra de luz daquilo que era pleno. Diria que passei algumas noites interrogando a memória, escrevendo na parede branca do quarto, encostada à cama com as pontas dos dedos; que fazia comentários sussurrados no escuro do quarto para ninguém ouvir, que olhava com dor para todas as janelas mais altas dos prédios, que todas as placas verdes de letras brancas pelas quais eu passava durante as viagens, que todas elas apontavam um familiar e estranho destino do qual, agressivamente, eu me abortei, para o qual eu não caminhei. Deveria ter dito que pensava na marca do xampu que usava e que deixava os cachos tão bem desenhados e, por isso, me divertia durante as compras no supermercado abrindo as tampas dos xampus especializados em loiro e cheirando aquele velho aroma guardado dentro das embalagens quase sempre amarelas. Com sorte, um dia, alguma delas, Palmollive ou afim, tinha um girassol impresso no rótulo e, ainda que soubesse que ela talvez nem conhecesse o maldito xampu, que quando estivéssemos lá, num supermercado da cidade dela, eu apontaria para a embalagem dele, controlando um sorriso envergonhado que aperta as bochechas e as torna levemente vermelhas. Deveria estar lá quando alugássemos “Volver” e eu segurasse a capa com as minhas mãos e acompanhasse o contorno das flores vermelhas que ornavam Penélope Cruz na capa. E perguntaria que flor era aquela? Aquela flor vermelha e cinza, eu repetiria, vermelha e cinza presa na orelha. Eu queria que fosse um girassol, mesmo que disforme, eu sabia que era um girassol, mesmo que a forma não fosse a de um girassol. Um girassol com pétalas vermelhas, será que ela entenderia? Um girassol que não é uma flor apenas. É uma inflorescência, um amontoado de flores menores e feias que unidas ali, entre as pétalas verdadeiramente amarelas, fazem o girassol. Um girassol vermelho com o miolo cinza. É um miolo cinza, vê?, eu diria batendo a ponta da unha sobre o centro da flor errada, como um jogo de sete erros entre o girassol vermelho e o girassol amarelo. Vou assistir ao filme, mas jamais serei capaz de vê-lo, envolvê-lo e me envolver nele. Tudo o que ele foi e jamais voltará a ser e tudo aquilo que deveria ter sido e não será. Never, for ever!, forever, never!.

Agora, depois daqueles três minutos, ainda estremecida pela proximidade dos fatos, agora, quando tudo está vazio, aqueles três minutos parecem preciosos. Parecem mais do que três minutos; são como uma caminhada de volta a qualquer lugar. Fico minutos pós-três-minutos, rabiscando com a caneta azul no papel da revista desenhos geométricos tridimensionais. Começa com um cubo e suas seis faces laterais; puxo triângulos de suas arestas e desenho pirâmides até que o rabisco no papel assemelha-se a uma estrela espacial. Entre os vértices das pirâmides puxo outros triângulos e, desses triângulos, outros triângulos, e outros triângulos até que o papel da revista esteja completamente coberto por um mosaico triangular e o cubo se camufle naquela confusão de três lados. A caneta escapa dos dedos e cai, exausta, sobre a folha da revista. Hoje: setenta e sete dias depois do dia oito, no qual os girassóis morreram. Vermelhos ou amarelos, morreram há setenta e sete dias, no dia oito de novembro, antes mesmo do verão chegar.

Haverá um porto seguro em algum lugar para ela, eu sinto. Qualquer coisa que está migrando na sua direção para lhe acalentar, lhe afagar as costas, lhe proteger. Uma pousada, como aquela pousada na qual fiquei sete dias quando também estava em Porto Seguro. A Pousada do Sol, com seus símbolos e cozinheiras chinesas e o cheiro de bolo de cenoura, que ela não gosta, feito logo pela manhã. Mas, talvez ela nunca conheça o porto seguro e jamais passe pela porta da Pousada do Sol e jamais sinta o cheiro do bolo de cenoura. Ficará ali, no litoral, nas águas rasas da praia, nas barracas de teto de palha, bebendo cerveja, fumando Sampoerna, falando de Bergman e das pernas-e-barrigas que passam pela tarde azul das praias nordestinas. Ela atravessará o mar que conhece tão bem e que eu conheço tão pouco. E beberá, fumará e falará de tudo e de nada, comandando a fala como quem rege uma sinfonia, como quem não precisa pedir atenção, como um gesto frente ao espelho. Talvez fale de mim. Três linhas com três pausas bem distrubuídas e nada mais, nem antes e nem depois. Três palavras. Falará no pretérito perfeito e no futuro do pretérito e, em último e terceiro caso, no presente. No papel de presente estampado com girassóis, na rosa vermelha, no envelope azul, na letra garrafal: não falará. Pressentirá qualquer coisa quando a brisa do mar desajeitar seus cachos espalhados pelo rosto: não ligará, recolocando-os desatenta atrás das orelhas. Aqui, a chuva de verão e o vento desajeitado que chega fraco depois de bater nas folhas da figueira à frente do meu prédio não irão refrescar o vapor dos dias e nem dissiparão as nuvens de fumaça do cigarro. Setenta e sete dias depois do dia oito, um vento que sopra lá não sopra mais aqui. O vento que é engolido no sumidouro do tempo. Setenta e sete dias depois do dia oito de novembro, quando os girassóis morreram, já no ante-princípio do verão.

Saturday, January 19, 2008

Roda Gigante


"Roda mundo, roda gigante

roda muinho, roda pião

o tempo rodou num instante

nas voltas do meu coração"

(na voz de Chico Buarque e MPB-4)


Comprei um isqueiro. E esse fato absurdamente pacato é a evidência maior de que eu não vou parar de fumar, como o prometido a Márcia ontem, entre o porre e a ressaca da festa de Reveillon. Não vou parar exatamente porque mesmo que o atual maço de Hollywood acabe, o peso do isqueiro no bolso, ou o brilho reluzente dele sob o maço vermelho opaco do cigarro ou o barulho das chaves batendo seu metal contra o metal dele me farão relembrar de que há a possibilidade de um novo cigarro, um outro maço. Por ser um isqueiro prata, sem marcas gravadas no seu corpo lateral, combina com os meus anéis e, dançando em minhas mãos, fazem um trio metálico bonito de ser ver no espelho atrás do bartender. Interrompo as mãos para, com uma delas, reajeitar a armação dos óculos, impressão de impaciência misturada a uma maturidade clandestina ou um suposto hábito que reforça a barreira impenetrável das lentes transparentes. O isqueiro, antes seguro na mão que não havia subido aos olhos, volta agora ziguezaguear nas mãos apoiadas sobre o balcão de madeira, sem, entretanto, que eu dê atenção aos seus movimentos arriscados.

A noite está calma pela primeira vez nos últimos quinze dias. O Natal não deveria ser tão próximo do Ano Novo, já que as pessoas se descontrolam em épocas festivas e ninguém nunca se lembra do que fez naquela uma semana entre o dia 24 e o dia 31.Ou talvez apenas porque o Natal é triste demais para algumas pessoas e eles se esforçam para esquecer aqueles sete dias que separam o nascimento do menino Jesus e a chegada de um ano novo. Eu não lembro, confesso. Sei quão chato foi o Natal. Recém chegado de Nova Yorque, após dois longos anos estudando os mínimos detalhes da língua inglesa, absorvendo todas as gírias e sotaques norte-americanos ready-made e, de repente, de volta aos milhares de erros gramaticais do português brasileiro. Aqui, neste bar, um garçom está lá fora retirando os pisca-piscas amarelos, equilibrando-se no último degrau de uma escada branca antiga para alcançar os fios mais altos da desagradável decoração natalina. Por dentro, não há mais resquícios das festividades dos últimos dias; há apenas um letreiro azul em néon da logomarca de uma cerveja ao lado da porta de entrada. Numa mesa, dois casais que se revezam espetando palitinhos no tira-gosto e bebericando das cervejas quentes; em outra, quatro rapazes talvez da minha idade, com as barbas por fazer, bermudas jeans que terminam logo após o joelho, engolindo copos de chopp que são continuamente levados vazios e chegam outros com a espuma branca e gelada transbordando. No balcão, apenas a silhueta de um homem, com seus cabelos úmidos e levemente ondulados sem pentear, levando à boca ora o copo de uma bebida escura, mais parecida com whiskie, ora o cigarro do filtro amarelo. A camisa social azul claro abotoada, as mangas dobradas até a metade do antebraço, simétricas nas suas porções dobradas sobre os braços cheios de pêlos negros, o relógio de prata largo no pulso que escorrega entre o fim da manga da camisa e a mão; no espelho atrás do garçom, ele é eu. E eu sou ele.

Acendendo outro cigarro e conto no cinzeiro que já foram outros três Hollywood. Eu diria “é apenas o quarto cigarro, Bruna. Tenho licença poética até o sétimo”, mas ela ainda não chegou e, por isso, o quarto cigarro. Quase um quarto de hora depois das nove da noite, quando ela deveria ter chegado. Daqui, olhando no espelho atrás do garçom de gravata borboleta, a minha imagem me antecede nos gestos, com o cigarro branco preso nos dentes, o isqueiro com a tampa aberta de onde a chama amarela sai, gargarejando inquieta para cima e aproximando-se lentamente da ponta marrom do cigarro; os olhos nos olhos do espelho e a mão pesada que desliza sobre a cabeça, recolocando as mechas de cabelo ainda molhado para trás. Quando o ar quente finalmente invade minha boca, fecho os olhos letargicamente, baixando o queixo quase próximo do peito. Com as pálpebras caídas, aquele do espelho não é mais eu. Eu sou eu e ele é escuridão, ainda que esteja lá também, com o queixo caído quase se encostando à blusa azul.

O espelho tem uma logomarca vermelha gravada no seu canto superior, quase escondido pelas taças dependuradas de cabeça para baixo: Casa dos Espelhos, em letras desenhadas. Como tatuagem. Imagino como seria uma casa feita apenas de espelhos: ao chegar a ela e caminhar em direção à porta da frente, também feita apenas de espelhos, estaria estão abandonando a casa, o avesso refletido do movimento de entrada? Um observador que não pudesse ver o andarilho e enxergasse apenas o espelho ou a porta da frente, acharia que ele está lá dentro da casa, entretanto, sem nunca parar de andar. Ninguém, então, seria morador: apenas passageiro visitante. Talvez, alguém entraria dentro dela apenas quando lhe desse as costas e se afastasse; cada passo distante da porta, no avesso do espelho, é um passo a mais para dentro da casa. Penso que entrar dentro dela seria impossível. Aproximar, tangenciando a entrada, é matematicamente possível: alcançando o infinito na caminhada para longe da casa, chegaria o momento, fora do tempo, em que nosso reflexo seria apenas microscópico – não! ainda menor -, seria invisível e o infinito de fora seria o infinito de dentro. Mas, se falamos em tempo, não falamos em infinito, porque o tempo é pouco demais para imensidão do não-fim (o tempo é mais do que relativo: é improvável). Então, sabendo que para entrar, esse alguém desafiaria o tempo, para tanger o infinito, a casa seria inabitável. Invisível, ela e ele jamais seriam, apenas estariam no frestas de tempo contida no momento. As paredes, sendo feitas de espelhos por todos os lados, formaria um poliedro de reflexos e re-reflexos; e reflexos de reflexos constituem o infinito, já que jamais se sabe o que é real e o que é imagem - como espelhos em vís-a-vís; assim, dentro da casa, apenas o incontável, o intangível, o infinito de dentro, as não-paredes, as não-limitações, o inexorável não estar. Ainda mais confuso é pintar a Casa de Espelhos. O desenhista acabaria por se desenhar nela, observador e objeto, narrador e personagem: dentro dela, pintando o lado de dentro, quando na verdade, está pintando o lado de fora; e do lado de fora, o próprio desenhista se pintando. Assim, jamais existiria a Casa dos Espelhos, retratável ou imaginária: apenas as paredes transponíveis, apenas as caminhadas, apenas o desenho das letras desenhadas no canto superior, quase escondido pelas taças invertidas.
(...)