Saturday, December 22, 2007

Sob o céu da Liberdade (continuação)


O último trecho, responsável pelo último quarteirão da Avenida Brasil antes da Liberdade, apresentava uma pequena elevação, como uma reverência à presença da praça logo em seguida, o que custou às coxas dela mais gotas de suor e graus a mais na temperatura que já era quase insuportável no meio das pernas. Ela retesou os músculos e, forçando o peso do corpo contra a sandália, venceu a pequena ladeira. Sentiu-se bem após o esforço, pois vislumbrara as luzes da decoração natalina, antes desenhadas na sua imaginação, mas muito mais intensas quando encontradas nos olhos por trás das lentes. Como pintor e quadro, levou a mão à altura daquelas bolas dependuradas tanto próximas a ela quanto lá no fundo da praça, entre as palmeiras e os chafarizes, mas que, na paisagem da sua retina, se justapunham centímetros distantes; com a ponta dos dedos, foi tocando cada uma delas, teclas de um piano noturno e iluminado, de cuja melodia poderia se ouvir apenas o barulho do vento que deslizava nas copas das árvores, se escorrendo nas folhas. Novamente, temeu que alguém a achasse patética e infantil: escondeu a mão teimosa atrás da nuca, massageando-a. Olhou de um lado para o outro da rua antes de atravessá-la e tomar o caminho da calçada da praça.
Passava por um carrinho de pipoca, quando foi invadida pelo cheiro de clarinê que o pipoqueiro terminara de fazer, já aprontando os saquinhos plásticos transparentes para guardá-los. A lembrança da infância veio à tona por aquele aroma: quando pequena, depois de passar a tarde inteira correndo pelos becos e ruelas da cidadezinha pequena na qual a avó insistia em morar, ela e as primas sempre paravam na praça central da cidadela. Com seus chinelos Havaianas imundos de terra alaranjada e com algumas moedas guardadas com esmero nas mãos e nos bolsos dos macacões, elas compravam saquinhos de papel abarrotados de pipoca, e saiam saltitando sobre as pernas finas dos ossos pontudos, derramando as bolinhas coloridas de corante e açúcar pelo caminho que perfaziam de volta às travessuras. Aquelas imagens, agora despertadas pelo cheiro adocicados dos amendoins, pairavam junto à iluminação, dentro e fora dela; ela procurou nos bolsos o trocado que levava para pegar o ônibus e, caminhando em direção ao carrinho de pipocas, fez um gesto indescritível com o leve movimentar da cabeça em conjunto com uma das mãos. Deu ao pipoqueiro – um senhor de algumas dezenas de anos penteados nas pontas grisalhas do bigode, vestido com um puído avental excessivamente branco, talvez obra de uma esposa caprichosa – algumas moedas, diferentes daquelas de seu tempo, e, sentindo o calor da embalagem entre os dedos, sentiu a boca umedecer-se ao se preparar para saborear a pipoca. Como uma das mãos, tratava de segurar os livros junto aos quadris e, com a outra, o saquinho de papel, procurando um banco por perto para poder se sentar e, assim, perdeu alguns minutos antes de voltar para casa. Era noite e era época de Natal e, logo, as pessoas se divertiam pela praça, algumas correndo, outras andando de mãos dadas, algumas crianças vislumbradas com o mundo gigantesco das luzes no alto das árvores e alguns idosos apoiados nas suas bengalas e memórias. Sentiu saudade do tamanho confortante com que via as antigas casas da cidade da avó, tão maiores do que ela; as portas eram portais para os cômodos ou para o quintal cheio de árvores de todas as espécies de frutas, no qual o Tico, o cachorro vira-lata de manchas pretas, passava horas a fio roendo o osso dos frangos e enterrando-os quando já estava satisfeito; as janelas tão grandes, cujos peitoris funcionavam como bancos no entardecer, quando os homens voltavam com as expressões cansadas para suas casas e conversavam entre si com as vozes grossas, sob os olhares das mulheres das vozes agudas e melódicas; os bancos de areia para construção eram desertos em plena rua e quase sempre viravam argamassa de castelos medievais para as princesas Barbies, que sempre voltavam para casa com um braço ou uma perna a menos. Sentiu-se velha e pequena; por isso, a saudade se fez muito maior.

Sunday, December 16, 2007

Sob o céu da Liberdade


Picture yourself on a train in a station, with plasticine porters with looking glass ties. Suddenly someone is there at the turnstyle: the girl with kaleidoscope eyes.

Lucy In The Sky With Diamonds - The Beatles

"I wrapped it up and sent it
With a note saying "I love you"
I meant it
Now I know what a fool I've been
But if you kissed me now
I know you'd fool me again"

The Beatles - Christmas time (is here again)



Era época de Natal e, num país tropical, todo Natal é pseudo-europeu já que a decoração das lojas, dos prédios e das janelas arriscam colocar algodão ou tinta sintética branca como neve, enquanto as pessoas andam de short curto, blusa regata e o corpo suado brilhando contra as pequenas lâmpadas que se acendem logo no começo da noite. Era tempo de Natal e por ser dezembro à noite, ela andava apressadamente pela Avenida Brasil, com medo dos pivetes dos cantos das esquinas e mais medo ainda das cantadas baratas dos bares escondidos entre os edifícios. A saia jeans dificultava o acelerar dos passos, pois o calor era muito e entre suas fartas coxas escorriam gotas de suor que, com o atrito do andar, acabavam por aquecer demais a pele, causando incômodos quentes e ela, elegantemente, passava a caminhar com as pernas ligeiramente abertas. Demorou cinco minutos para vencer a enxurrada de carros que subia-descia a Afonso Pena; olhava, atrás dos óculos de armação fina e metálica, os vários tipos e as várias cores dos veículos, imaginando se era por preço ou por moda que a maioria dos carros ou era preto metálico ou prata metálico. Ela se sentiu sufocada e libertou os cabelos do bico-de-pato de metal, balançando a cabeça de um lado para o outro, ventilando as mexas de cabelo castanho-escuro que, agora, se deliciavam e se contorciam com gozo em caracóis cacheados, como se provassem a liberdade de estar soltos; e o gesto, gracioso como valsa, foi colhido por muitos com atenção, mas ela, ciente dos olhares, recriminou-se, envolvendo com as pontas dos dedos o cabelo num grande coque e recolocando a presilha. Verde, o semáforo assinalou passagem e ela caminhou ainda mais apressada, cruzando a avenida Afonso Pena pela faixa de pedestres; olhando para baixo: viu os vários carros metálicos, pretos e pratas, parados sob o comando da luz vermelha no sinal seguinte; olhando para cima: percorreu-lhe um frio na barriga quando sentiu os ventos gelados dos carros que desciam a avenida em alta velocidade. Atravessada a última pista, ela parou rapidamente perto a uma árvore e, na estrutura de concreto que haviam construído ao redor da planta, ela apoiou os livros; moveu a cabeça, discretamente, de um lado para o outro, averiguando a possível presença de outrem e, quando certificou-se de que ninguém a observaria, deu às costas para a árvore, posicionando-se sobre a pequena sombra que seu tronco perfazia no chão, e levou as mãos às costas. Deslizou uma delas pelo corpo, alisando a roupa até a barra da saia, dissimulando um gesto de recomposição, quando então, sorrateiramente, tomou a direção do avesso do pano, constatando a temperatura alta por baixo da saia, que levantou-se quase à altura da cintura, enquanto ela recolocava os côncavos dentro dos convexos. Alguns segundos rápidos e ela retornou a saia ao seu devido lugar, centímetros acima do joelho. Sorriu com os dentes largos, pois se sentiu vitoriosa e aliviada naquela espreitada. Não, ninguém havia visto e ela, assim, buscou os livros na estrutura de concreto e, abraçando-os, retomou a caminhada rumo à praça da Liberdade, realmente mais livre.

Naquele ano, especialmente, haviam enfeitado a Brasil com globos brancos iluminados por dentro com lâmpadas amareladas, dependurados nas árvores do canteiro central. Pelo dia, quase ninguém notaria a decoração: dentro dos carros, das lojas, dos bancos, das bancas, dos próprios mundos, olhavam sempre para os volantes, para as mercadorias, para os cheques, para os jornais, para si mesmos, sem jamais fitarem as árvores frondosas que acariciavam o céu azul da capital mineira. Entretanto, como era noite e ela não tinha mais pressa – andava, no próximo passo, sempre mais devagar, não querendo chegar em casa -, dedicou a pequena caminhada a observar as bolas amarelas em alturas diferentes, presas por finíssimos fios, invisíveis daquela lado da rua. Ela já não cuidava mais dos passos; não estava interessada no que viria à sua frente – um degrau, um buraco, uma pessoa -, apenas andava com o rosto virado para a direita, encantada pela miúda sensação que experimentava com as luzes nas árvores, talvez porque se sentisse uma pequena esfera iluminada por dentro no meio de um dia ensolarado, quando ninguém mais poderia vê-la e ali, com aquelas outras esferas refletidas no vidro dos seus óculos, se sentisse menos vazia, mais iluminada, quase ela mesma. Passou por três pontos de ônibus, nos quais poderia ter parado e esperado o número “5101” passar escrito no painel eletrônico de um daqueles veículos azuis, quando subiria a bordo e passaria o resto da viagem apoiando os livros nas coxas, sem olhar para os demais passageiros. Contudo, não tinha mais pressa e desejava alcançar a praça da Liberdade, que, naquela época do ano, estava tão bem decorada com as bolas brancas iluminadas – as mesmas da Brasil, que ao abandonarem a avenida, espalhavam-se pela praça, como um rio que, finalmente, toca o mar e conhece a amplitude do oceano-, pisca-piscas coloridos abraçando os troncos das árvores, guirlandas verdes com seus laços vermelhos dependuradas sob as cabeças na passagem principal. Ela alcançaria a Liberdade, e porque sabia que alcançaria, andava sempre mais devagar no próximo lançar de pernas, avolumando a vontade de chegar no meio do peito, até que ela fosse infreável e se convertesse num momento amplo dentro do tempo, como uma escapatória dentro do espaço, como um abrir de pálpebras para dentro.

Friday, December 14, 2007

Como uma primavera, em mim



"Eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor."





(Para uma menina com uma flor - Vinícius de Moraes)





Roma me tem amoR (Pedagodia de simetrias e avessos)







Exatamente: falávamos de caracóis e era um (ou Sete?) silêncio muito grande. Naquela madrugada: desconhecidos -mas somente antes da plenitude. Um antes que, ad infinitum, não é nada muito além do depois e do agora. Amor e de-S-amor: inesperada, encarou-a pedindo (:) três vezes. Dentro do ônibus que corria para um destino com a segurança dos que sabem para onde vão (e ela tem a força de quem sabe que a hora certa vai chegar: quase noite, quase entardecer, quase tarde, quase nunca). Eu disse “é o mar mais longe que eu vejo, o sertão que já foi um mar, um amar de uma rosa” e comple(nitude)to “chove todos os dias aqui, não tenho relógio nem rádio, mas sei que deve ser por volta das três horas, porque é pouco depois que o sol está no meio do céu… é que eu também não tenho calendário, mas sei que era dia 08, de ou-outubro, e era quase noite no relógio do Sol”. Ela segredou como uma notícia mínima “estamos no horário de verão, o sol sempre se põe mais tarde”. Summer-time. Constelações: “menvolve”, e falávamos de mel, como naquele conto de Cortázar. “Fontes de mel”, disse tomando a xícara de chá de onde saiam línguas de vapor adocicado, como aqueles dos cigarros: "onda do mar do amor". Sampoerna, ela pediu três vezes. "Gosto de ver você no seu ritmo-rima", reconsertei os óculos. E de novo me vens e me contas do mar aberto das costas de tua terra, do vento (no sumidouro de qual espelho?) gelado soprando desde o pólo, nos invernos(inversos), sem nenhuma baía, nenhuma gaivota ou albatroz sobrevoando rasante o cinza(you know, grey is my favourite color), grau (diferenças, apenas diferenças)das águas para mergulhar, como certa vez, em algum lugar (num jardim, numa praia, quem sabe), rápido iscando um peixe no bico agudo, mas essas outras águas que lembro eram claras verdes, havia sol (…) e acho que também um reflexo (ou sombra?) de prata no bico da ave no momento justo do mergulho (na piscina, no mar aberto, então, me vens de novo)... e lentamente falho, e lentamente Caio cada vez mais fundo (para o fundo, profundo) e já não consigo voltar (as mãos não estão nos bolsos, mas nelas está algo maior, bem maior) à tona porque a mão que me estendes (and loving every minute) ao invés-inverso-inverno de me emergir me afunda mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse Rio-mar aberto que nós sabemos que não acaba assim nem agora nem aqui.




Blue Skies
Caetano Veloso
Composição: Irving Berlin
blue skies

smiling at me
nothing but blue skies
do i see
bluebirds
singing a song
nothing but bluebirds
all day long
never saw the sun shining so bright
never saw things going so right
noticing the days hurryng by
when you're in love, my, how the fly
blue days
all of them gone
nothing but blue skies
from now on


Dados sobre a foto: http://olhares.aeiou.pt/foto1430610.html ; autor: António Lança