Friday, October 26, 2007

Aveszo


7

- Tenho essa pressa.
- Você tem mais do que pressa...
- O que eu tenho, então, se não é só pressa?
- É também e mais do que pressa – bebeu da cerveja esquecida no copo plástico, fazendo pausa mansa com sabedoria no sabor. Você anda em fuga, correndo não se sabe para onde, vai indo sem saber como... – e balançou a mão livre no ar, como se desanuviasse uma fumaça, empurrando-a para frente - se reunindo numa noite, se desmembrando pela manhã.
- Se andamos – observou-a, como quem se reinventa - saímos de um ponto. Se eu ando mais rápido – pausa e desvio de olhar para a boca da ouvinte - é por pressa desse próximo.
- Você anda não como quem saiu – resposta concisa no olhar de Maísa -, mas como quem quer chegar.
- Você quer chegar também, não quer? – palavras mínimas num momento largo de sentimentos no fundo do copo de cerveja nas mãos de Teresa.
- Eu não. Chegar é sempre amanhã e amanhã é nada, estrada de ferro para o seguinte sem chegada. Paradoxo do andarilho.
- Não andar é o mito da caverna de Platão, medo do desconhecido.

Não se entreolharam mais; Tereza se recostou no sofá, cruzando as pernas e reajeitando a roupa, não permitindo ao tecido ficar um centímetro a mais perto dos joelhos, limite da saia no ápice da coxa morena, enquanto Maísa separou as pernas e já apoiava as mãos sobre o joelho para se levantar. Dividia, uma, a atenção da outra com o movimento dos convidados na festa, alcançando com os aguçados ouvidos um murmúrio de conversa à direita, reconhecendo um casal abraçado no outro sofá verde à esquerda do lounge especialmente decorado para aquela solenidade GLS. Uns amigos em comum passavam e davam risadinhas com as bocas abertas e bêbadas, alternando com as pontas dos dedos uma reta invisível Maíza-Teresa-Tereza-Maísa. Elas sorriram e logo olhavam em sentidos opostos, pessoas opostas. Maísa se levantou, foi buscar algo como desculpa para abandonar o sofá. A outra, imóvel, procurou a bolsa atrás de umas almofadas e achou o cigarro amassado, sem encontrar o isqueiro. Uma terceira mulher se aproximou, fogo na ponta de um palito de fósforo: Teresa ofereceu o rosto com o cigarro preso nos lábios em “C” deitado, parábola com concavidade para cima; tragou duas vezes até acender o canudo branco. A dona do fogo balançou o fósforo no ar, jogou-o longe e, sem pedir licença, sentou-se ao lado direito dela, lado inverso de onde Maíza havia saído. Das caixas de som, saiu a voz rouca do Legend “we just don’t care, we just don’t”, as mulheres balançaram os cabelos soltos, os homens bateram os sapatos engraxados contra o piso marcando o tempo do bumbo. Embora soubessem o que John falava, ninguém entendeu o que ele realmente dizia. Iluminação decaiu, a noite se aproximou, foram acesas luminárias amarelas e vermelhas, pendentes do teto por um fio fino e os corpos naturalmente se aproximaram, boca com boca, inferno e céu. O sussurro das vozes amenizou a intensidade, só uma gargalhada ou tosses desmedidas rasgavam o zum-zum-zum velado das pessoas. Maísa, num dos apótemas do hexágono irregular inscrito num círculo de amigos, conversava com todos, mãos escondidas nos bolsos, ombros relaxados. Quando lhe perguntavam onde estava Tereza, desconversava dizendo que estava por aí, não suportava quando ela fumava descontroladamente, não sabia dançar, bebia demais, flertava insuportavelmente igual às vezes em que elas flertaram, lá naquele princípio e ante-princípio de tudo. Era suportavelmente doloroso vê-la exatamente igual, sem qualquer marca sua nela, tela em branco. Não disse nada, contudo. Apenas inclinou a cabeça e sorriu leve, sem graça, olhando Teresa sentada no sofá, mão estendida no encosto do móvel, com o terceiro cigarro nos dedos, cabelos constantemente jogados para trás ou preso atrás das orelhas dos brincos de duas argolas grandes; e a terceira pessoa com o corpo todo direcionado na direção da falante, olhos em faróis para o espetáculos da boca molhada de cerveja. Ciúmes? Alguns amigos do hexágono de comentários pensaram ser ciúmes, olharam para o sofá também sem mover músculo algum da face, desentendidamente atentos. Mas Maísa sabia que era só tristeza. Ciúmes e tristeza não se cumprimentam. Voltaram à discussão sobre a CPMF, destronamento de Plutão, cinema europeu, novela das oito, Tio Sam e Lenin, reencarnação.

6

Reencontraram-se, horas depois, no espelho do banheiro. Maísa saia de dentro de uma das cabines, ainda fechando a braguilha da calça, lutando contra a dificuldade do botão muito maior do que a casa. Tereza retocava o batom, espremendo os olhos, lutando contra a imprecisão proporcionada pelos milhares de mililitros de cerveja. Demorou um tempo até que se reconhecessem pelo espelho. Teresa observou que a outra tinha dificuldades com a calça, olhou com ironia para os braços magros de Maísa que tensionavam as veias contra a pele com força entusiasmada para abotoar a calça. Não parou de passar o batom, mas acelerou o ritmo; esfregou um lábio no outro e com a ponta do mindinho limpou as manchas que evadiam dos lábios. Guardou, com cautela, o batom de volta à bolsa, apoiou-se sobre a pia com as mãos na borda, batendo a unha pintada de vermelho no mármore preto.

- Vem cá – e, sem abandonar o corpo da pia, meteu os dedos dentro da calça ainda aberta de Maíza e puxou-a para perto de si. Fitava-a nos olhos e, com delicadeza, concluiu a tarefa de abotoamento da calça. Ainda deslizou as mãos do abdômen inferior de Maísa até a lateral dos seus quadris, sem encontrar uma mão na outra, apenas confortando-a no espaço preciso do corpo entre as palmas das mãos abertas. No reflexo do espelho, Maíza viu as costas expostas de Teresa, sem marcas de sutiã, apenas leves traços de um corpo magro e bonito, desvendado pela displicência da blusa cinza caída às costas. Posicionou, então, as duas mãos sobre os ombros desnudos de Tereza, massageando-os com leve pressão, caminhando com as pontas dos dedos curtos até o pescoço, escorregando e subindo o declive da nuca. Penetrou os dedos nos cabelos macios daquele corpo anestesiado pelo álcool que, agora, lançava as mãos para mais atrás do quadril dela, prendendo os dedos nas presilhas da calça feita para o cinto. Brincou com os cabelos escuros de Tereza até fazê-la fechar os olhos e mostrar a sombra clara pintada sobre as pálpebras dos cílios longos e também retocados. Era uma mulher tão bonita, Maísa pensava quase sorridente, imaginação transitória entre o “tão” e o “bonita”, embalada na embriagez que exalava do corpo entregue de Teresa. Era uma mulher tão envolvente, Teresa inspirava abrindo as narinas, memória mergulhada no “envolvente”, reconhecendo o perfume antigo do corpo. Alguém entrou no banheiro e o som do ambiente conturbado lá fora sulcou a atmosfera tépida do banheiro. Despertou-as da condição encantada em que estavam. Desenlaçaram-se. Uma buscou a bolsa sobre a pia, outra foi lavar as mãos e o rosto. A porta arranhou no chão, na saída da última.




5

Maíza dançava: corpo solto no ar, cabelo preso pelo próprio cabelo num coque em forma de caracol; silhueta brincando com as formas, boca aberta de onde saiam onomatopéias álibis de um sentimento bom. A música era trance, mas ela cantarolava:

Como fosse um par que
Nessa valsa triste
Se desenvolvesse
Ao som dos bandolins....

E como não?
E por que não dizer
Que o mundo respirava mais
Se ela apertava assim...

Seu colo como
Se não fosse um tempo
Em que já fosse impróprio
Se dançar assim

Ela teimou e enfrentou
O mundo
Se rodopiando ao som
Dos bandolins...

Esqueceu-se de Teresa, da dor, da CPMF, da decadência de Plutão, das contas, das correspondências, da idade, da identidade, do capitalismo, do comunismo, de ontem e de amanhã. Gingou no ar, maestra e regente da própria música: letra e melodia. Olhos fechados, alma aberta.

Tereza, de volta ao sofá: quarta pessoa, mesma anedota, quarta vítima, mesma técnica, quarto pedido, mesma recusa, quarto sentimento, mesma indiferença. Olhos abertos, alma fechada. Na memória, a polifonia da música e da gaita, com Blue e Elton John: “What do I gotta do if sorry seems to be the hardest word".


(Dados sobre a foto) Autor: Alexandre P. Site: Olhares.com

INDEZ

Suicidadãos: epifanias póstumas entre fragmentos de uma vida extraordinariamente desconhecida


Terra de Vera Cruz, 11 de setembro de 2007


Eu sabia que era você quando seu corpo cansado despontou de dentro da Mercedes preta e recebeu das mãos do sargento este envelope amassado e sujo de sangue. Perdoe-me a bagunça – mas você bem sabe que eu nunca fui ou soube fingir ser uma mulher muito organizada, o que me desbancou da elite feminina sou-frágil-sou-delicada-sou-mulher -, mas, meu amor, no nosso último contato, eu não haveria de desfazer todo esse quadro que você pintou sobre mim: a tinta sempre foi esta, vermelho-rubro, cor sanguinolenta, visceral. Talvez o cheiro esteja desagradável, esse odor metálico absorvido pela celulose do papel deve lhe dar ânsia de vômito e, ainda sem os antigos olhos, posso vislumbrar o rasgado da sua boca com asco desta carta. Fique com o seu nojo e a minha indiferença, pois só mesmo agora, nesta pausa antes da morte, é que sou capaz de perceber a inutilidade dessa fútil espécie humana e seus hobbies made in USA. Ojeriza, agora, é o melhor que lhe posso oferecer: herança inalienável sem testamenteiros.

Ah, eu dizia que sabia que era você que faria a questão mórbida de ler minhas últimas palavras. Sei por que você tem gosto gótico pela morte. Todo mundo estará lá: platéia plácida e a certeza do aplauso morto. No enterro, cogito, já sei: passará minutos sonolentos proliferando esses vocabulozinhos patética e religiosamente aprendidos nas aulas de latim da faculdade de Direito; terno preto, camisa social branca por dentro da calça, todos os botões sisudamente fechados até o caroço na sua garganta, elegantemente triste com a morte de tão-querida-amiga, que-Deus-a-tenha e outros momentos epifânicos arroz-de-festa. Poupe-nos o desconforto. Apenas diga “um dia a conheci, era bonita, mulher feita de vistosas ancas, morena brasileira, fruto telúrico do nosso solo pátrio. Morreu por teimosia, nos deixou de castigo pela eternidade”. Martinha irá chorar e o lenço preto dançará nos dedos enrugados. Contudo, ninguém perceberá, pois botox é feito fralda e vai absorver as lágrimas e os suores. Ela dará entrevistas aos jornais, consolada no peito estufado e malhado do mais novo gigolô da novela barata do canal Roupa Suja, dizendo coisas agradabilíssimas copiadas-coladas de qualquer outro velório, relatando happy-hours dos quais nunca participei, talvez até memorando, com faixa de melhor amiga, um coquetel inventado na casa de um amigo em comum, de preferência nome de estrangeiro impronunciável pela segunda vez. No enterro, meu caixão fechado, lá dentro o resto de mim, catados com tanto zelo pelos bombeiros. Pedaços de um pouco corpo espatifado contra o gris do asfalto, emendados como pedaços de boneca e enfeitados com rosas brancas e amarelas para ninguém ver; do lado de fora, sete coroas coloridas, com faixas esperançosas, fotos minhas, anos 60, 70 e 80, punk, pop e rock: decoração de um mau gosto justificável e perdoável apenas pelo momento funesto. Você chamará alguém para tocar? Uma orquestra e o Réquiem, de Mozart? Não, meu querido, chame a mais popular banda de axé, com direito a atabaque, negro um-e-noventa, cabelo dread, sorriso branco... Mozart morreu só: eu quero minha morte a toque de tambor africano, marcha-grave, congado. Morri no Brasil dos brasileiros, não no universo paralelo e pseudotropical dos nossos amigos engravatados.

Agora, eu sei, suas lágrimas secaram. Talvez você confira um tremor na mão trepidar a folha de papel, tapando a boca com os dedos assustadoramente inertes. Pensa por que eu escolhi você. Mas, sabe? Foi você quem sempre me escolheu. Ou, melhor dito, a você sempre coube a minha não-escolha e é justamente agora, na pausa antes da passagem, que sou capaz de tomar-lhe as rédeas do jogo e colocá-lo, surpreso, sob o meu arbítrio. Calma, não há nada delatado aqui: seus segredos se esmagaram com o meu corpo no meio do asfalto da Avenida Brasil. Ninguém saberá limpar meu sangue deles; estão, pois, muito bem guardados. Respire outra vez: você está a salvo e eu estou morta, relaxe.

Quem sabe - eu indago, minutos antes de subir no parapeito desse prédio – você esteja interessado no meu último momento de vida. Meu caro, trejeitos para metafísico nunca lhe cumprimentaram, já que o máximo ao qual você se aproximou de alguma filosofia foi quando leu Karl Marx e ficou excitadíssimo com a mais-valia. Entretanto, se sua vontade inconsciente o fez atravessar o último ponto final e o encaminhou até esta presente linha, acho viável dar-lhe meu último comentário não-político, como aqueles os quais você me fazia parar de dizer, já no quinto Martini da noite. Sou mulher, meu senhor, sem as dores do parto, mas com as mesmas mazelas miseráveis da alma. Não se decepcione agora com minhas epifanias póstumas: você bem sabe que tentou me engravatar, me socou num terninho à lá Condoleezza Rice, me fez trepar com altos executivos duas três vezes na noite, até com mais de um homem, para ver se eu criava essa carapaça de indiferença que você ostenta com pose e poder. Para ser sincera, sempre que voltei ao meu apartamento pela manhã, corpo destruído e alma morta, havia ainda em mim um tesão descabido pelo sagrado, instinto rousseauniano, não querendo ser corrompido. Lavei os cabelos, o corpo e o caráter com xampu barato e embebi de álcool e água sanitária as roupas fedidas da fumaça do seu charuto. Pentei as madeixas setecentas e setenta e sete vezes; por baixo do edredom, de roupa, me toquei carinhosamente, gemendo em sussuro para um rapazinho musculoso e de cachos dourados, membro endurecido que não me penetrava: apenas caminhávamos de mãos dadas numa dessas pracinhas de cidade pequena, feito Itabira de Drummond. É isso: sob o coque da mulher-moderna, havia também uma Amélia emocionada e à espera do próximo capítulo da novela das oito, mulher com a qual você nunca trepou e jamais trepará. Elas estão morrendo: saltarei, em alguns instantes, com a minha Amélia nos braços, como amazonas no embate do sertão, um seio a menos pelo filho que não tive. Pereceremos eu, ela e – principalmente – um pouco mais de você.

Você ficará bem! Trate de não convulsionar esse choro. Sua maquiagem metrossexual irá desmanchar e as putas-tristes de García e Copacabana irão ver quão velho você está. Limpe as lágrimas com o lenço de cetim italiano; aproveita e também limpa as mãos sujas do meu sangue que, muito provavelmente misturado ao seu suor, criou uma gosma incômoda. Ou não limpe agora e, quando acabar de ler esta carta, limpe-se nela mesma, já que é capaz de ver tanta sujeira aqui, reflexo do espelho da sua alma. No meu último impulso, ainda quero você limpo e impecável por fora, posto ser impossível por dentro. Além do mais, não lhe quero ver novamente nos seus poucos momentos byronistas, tomando dois Prozac e meio com um copo de whiskie on the rocks. Nós dois já sabemos que você apagará em meia-hora, baba branca escorrendo do canto do lábio, sonhará com o Schwasnegger, sendo a primeira dama do governador-do-fututo, peruca loira à lá Monroe com esse bigode Jânio Quadros. Acordará excitado, corpo estranho latejando dentro da calça de linho. Irá se aliviar na ducha pensando na enteada, tomando outro Prozac mais um Johnnie Walker. Livre-se desse espírito, pois hoje é dia de festa – ainda que seja fúnebre. Invadirão sua casa no nosso – perdão, digo: - meu velório. Você se achará tão importante e imponente como antes: “meus pêsames” retumbaram no ouvido do seu ego como “meus parabéns”. Celebre: hoje é tarde para mim e festa para você.

Presa, aqui dentro desse apartamento de pouco luxo que você me deu, prestes a lançar meu fraco corpo em queda livre pela janela, tenho de me respeitar: reconhecer que passei as primaveras como invernos, sem jamais experimentar a sinestésica sensação do pôr-do-Sol na beira da praia, sem nunca ter sentado numa gangorra de play-ground, como este aqui, no piso do condomínio, de onde ecoam vozes de criançada serelepe, antes insuportáveis, agora o embalo angelical dos meus últimos suspiros. Eles não irão se assustar com meu corpo espatifado no chão, pois, há pouco, no momento exato em que nasceram, reconheceram de imediato o outro extremo: a morte. Reconheça, em meu respeito, a beleza da minha morte livre; imagine o vento nos meus cabelos soltos, meu corpo de peso sem balança para medir, Quintana cantando “eles passarão, ela passarinho”. Você pode até ejacular com o Arnold, darling, mas sou eu quem vai para a Califórnia nesse verão.

Meu querido, não faça meu epitáfio e nem chore copiosamente. Deixe uns otários se lamentarem e sentirem o desgosto do meu caixão fechado, sem cena e sem céu. Apenas escreva na minha lápide, com corretivo escolar, quando não houver mais fotógrafos e coveiros: aqui jaz a minha pior amiga e melhor inimiga: Ética.

Bom final de tarde e não se esqueça da sua reunião, amanhã, com aquela empresa construtora: negócio de primeiro mundo, corrupção tupiniquim.


Com amor,
Ética

Friday, October 12, 2007

In n' In



"She eyes me like a pisces when I am weak
I've been locked inside your heart-shaped box
for weeks
I've been drawn into your magnet tar pit trap"


Nirvana
Heart-Shaped Box











Há dias que não conhecem o fim. São dias meus, principalmente, só meus, mergulhados no escuro do apartamento, porque é sempre de noite e é sempre demorado. O céu, às vezes lilás e triste, vai deixando o escuro se espalhar e infiltrar no atrás das nuvens, minguando até que o sol nem apareça mais no horizonte; os prédios recortam-no com seus vértices gritantes e, inerte pela noite, o céu aceita que o poder de suas estrelas fique ofuscado pela pretensão das luzes das casas e apartamentos. São dias estranhos dentro de sensações confusas que não passam com cigarros, não passam com garrafas de vodka inteiras, não desaparecem com a (re)leitura das várias mensagens no painel do celular, não aliviam mesmo depois de assistir horas de programas estúpidos nos canais abertos, não abandonam o âmago mesmo lendo livros e análises, fórmulas e teoremas, porque até na leitura é fácil achar motivos para voltar no exato instante em que tudo se explodiu com a precisão de um botão de rosas em plena primavera: a forma choca-se contra o pensamento. Fico minutos em baixo do chuveiro, deixando a água quente ou fria, cair sobre o rosto, a nuca, os ombros e deixo que ela suavize um corpo aprisionado dentro de seus próprios limites estranhos. Aperto os olhos com muita força, limpando-os com certa freqüência para evitar que a água entre e faça-os arder, contraindo as pálpebras até perder o equilíbrio e jogar a mão molhada contra o box do banheiro. Um box de vidro transparente onde, quando está esfumaçado, eu escrevo aquele mesmo nome, repetidas vezes e em inúmeras formas, como se fossem lado de uma mesma figura, um poliedro quem sabe. A cada novo traço, um sorriso ou um soluço quase sempre seco; em cursiva, itálico, negrito, riscado, sublinhado... várias vezes o pensamento toma a forma no vapor de água que cora o vidro e se transforma no meu painel, ou melhor dito, diário. Mas, é só aparecer três ou quatro vezes aquele mesmo nome (ou apenas algumas letras tão íntimas minhas capazes de conduzir aquele mesmo momento), que eu acabo por deslizar a mão do princípio ao fim do box, limpando-o daqueles projetos fugazes de sonhos e planos. Sento-me num canto do banheiro verde do meu apartamento, jogo a cabeça para trás, apoiando-a sobre uma das paredes, desligo o chuveiro e deixo o tempo correr com as últimas poças de água que se derramam pelo ralo. E é só mais um banho dentro dos infinitos dias que se passam desprezando os calendários e os relógios. E há esse sufoco entre a espera e o querer.

O corpo ficou indefinidamente naquele espaço, que era pouco e exato, naquele derradeiro momento em que algo se rompeu, como uma represa que não suporta mais a correnteza de um rio em época de cheia. Talvez aqueles instantes tenham durado segundos, minutos na mais longa hipótese. Mas, um tempo em que o corpo desprezou o mistério da gravidade e a alma observou-o como uma fênix num último vôo rasante, quando sabe que pela última vez sente aquele frio do ar em velocidade contra suas penas. Um momento que passaria despercebido, indolor, inconcebível, incontrolável, inenarrável, instigante, in n’ in, dentro e dentro. Talvez fosse só mais uma noite no conforto da paz insensível dos dias. Mas, era cedo e falávamos tanto e nos deixávamos ser tão inteiras que, entre voltar atrás ou não, agora estamos aqui dentro, como testemunhas de um mesmo crime, cúmplices de uma mesma história, lados do mesmo poliedro espelhado. Bem que tentei duas ou três vezes piscar os olhos, tomar um gole de água, rir para o ar, dissimular uma tranqüilidade auto-iludida... ainda que eu desvencilhasse a mente, o corpo e a alma estavam entregues e , embora eu tentasse correr deste destino ceifado há muito tempo, todos os sinais e os segredos acalentavam esse disparate e me faziam ansiar pelas palavras seguintes, que chegariam como balas de revólver matando um sem-volta de mim que há tempos esperava para ser morto. Sete palavras ficaram grudadas nos dias seguintes – ou talvez eu tenha ficado grudada a elas -, como se nada mais fizesse sentido e eu só conseguia repeti-las, no escuro do quarto de luzes apagadas, sobre o edredon, sentindo o próprio hálito; os ouvidos ensurdecerem e apenas ouviam o que vinha de dentro, como um canto de cisne, uma escala de blues. Os olhos se desfizeram em caleidoscópios que recombinavam as cores dos dias em imagens que só faziam sentido quando eu me voltava para aquele exato momento, quando tudo ficou muito mais complicado, ou até mesmo para antes, quando tudo era tão bonito, mas tão embaçado; as mãos rodopiavam pelas folhas pautadas dos cadernos, desobedecendo as ordens que eu enviava para que parassem: giravam e manchavam o papel com aquelas mesmas letras ou com alguns pensamentos naufragados de suas andanças. Naquele momento, quando então, tudo se explodiu e implodiu, acabei por juntar pedaços e imagens de tudo que se passara e guardei-os juntos às outras coisas nos bolsos, nem ao menos me importando se apertá-los entre os dedos provocaria um corte, dado suas arpas afiadas. Segurei-os violentamente com a necessidade de quem se despede e ainda sinto um vigor nas pontas dos dedos que ainda sabem deixar os pedaços livres para uma próxima ex-implo-são.

Acho estranho quando eu digo que não havia dor, antes daquele dia. E não havia. Existia um contentamento sonâmbulo com a alma completamente cega. Agora, há uma dor, sim, embora o instante tenha sido belo - e mais belo e doloroso ainda o pós-instante -. E é do mais alto dessa dor que nasce também a sobrevida que me faz levantar do canto do banheiro, secar os cabelos e passar horas procurando, debruçada sobre a janela, o cruzeiro do Sul, para achar qual ponto, cardeal-final-ou-triplo, que me leva para um pouco mais perto dela; a dor se contorce no peito-garganta e só depois, é que ela se alivia, pesada e com um outro nome que eu jamais sonhei em falar e sobre o qual ainda não escrevo, porque é – ainda – grande demais para mim.

(Dados sobre a foto em link na figura)
Para ouvir: In a Lifetime; Bonno Vox & Clannad;

Monday, October 08, 2007

Infinita Highway



Menvolve...
Desenvolve, em mim, revolta.
Da distância, que não permite resolver.
Sempre: "Volver".
Vou ver. Sem devolver-te esse você em mim(...envolve).


Passariam horas ao telefone, um tremia e o outro falava, e passaria a eternidade de uma distância que chegava a doer. Talvez fosse azul lá fora, no céu uma lua de prata, uma e outra estrela discutindo as disposições dos astros. Mas, estavam de olhos fechados, pêlos eriçados, corpos no limiar da plenitude. As palavras tomavam formas engraçadas no jeito de falar de um, no jeito de rir do outro: e eles sonhavam como era bom se encontrar, por fim e enfim. Falavam sobre a praia, sobre os outros, mas em cada história, falavam mais de si mesmos, um para o outro, outro para um, se deixando mergulhar naquela correnteza que flui pela linha, que ficava suspensa por um fio. E se deixavam tocar, respirando em largo, quando não havia mais voz no telefone, mas só uma respiração desajeitada e umas interjeições suspiradas. Ah, eles se falavam e sobretudo se achavam. Um precisava dormir, o outro tinha que estudar. Mas, era ad infinitum aquele momento: e era deles. Um rio desaguou de um rosto; o outro segurava a testa com a mão aberta, olhando para os pés descalços e imaginava aqueles pequenos grãozinhos de areia entre os dedos. Eram maior do que o lugar, eram o próprio sertão e o vasto mundo. O outro olhava a tecla sete no telefone com as três letrinhas "prs" embaixo e tentava fazer frases com ela. Havia o silêncio também, o silêncio em persona, que eram bem maior do que se dizia, segredava. Um deles disse:
- Como é que se faz quando se treme por dentro?
- Abraça...
Eles hastearam a bandeira, ao mais azul do céu e o sol, durante os dias seguintes, dourado como ele só, flamejou no desenho que ninguém mais podia ver, só eles dois: por que era para eles e por eles aquele desenho, que não era só desenho, mas estava tatuado. Estava instaurada uma... independência? República? 'Mon'arquia? Não sabiam dizer. Aqueles dois naquele dia fizeram o que sempre deveriam ter feito.
Uma ligação veio ao fim, e uma outra conexão, mais forte e mais bela, nasceu e passou a conectar os dias, como pérolas num colar, pérolas essas que se catam no fundo de um rio, de águas muito azuis.


"Nós Dois
Tadeu Franco
Composição: Celso Adolfo

E nós que nem sabemos quanto nos queremos
Que nem sabemos tudo que queremos
Como é difícil o desejo de amar
Você que nem me soube quanto eu quis
Que não coube, não me viu raiz
Nascendo, crescendo nos terrenos seus
Eu da janela olhando a lua, perguntando a lua
Onde você foi amar?
E nós que nem soubemos nos querer de vez
Estamos sós, laçados em dois nós
Um que é meu beijo o outro é o lábio seu
Não sei sair cantando sem contar você
Que eu sei cantar, mas conto com você
Que eu vou seguir, mas vou seguir você
Queria que assim sabendo se a gente se quer
Queria me rimar no seu colo mulher
Vencer a vida donde ela vier
Ganhar seu chegar no chegar meu
Dar de mim o homem que é seu"


Saturday, October 06, 2007

Notícias mínimas: ad eternum (juro que agora acabou!)


Tomo um trago longo, com os olhos semi-cerrados, segurando o cigarro entre dedos indicador e médio, jogando a cabeça levemente para trás. Ela me assiste, mordendo a ponta do dedo mindinho da mão que segurava o cigarro; com o box ainda em mãos, ela o apalpa, olhando-o algumas vezes e me olhando nos intervalos.

- Restou isso: uma marca de cigarro e de alma – ela diz sem perturbar o olhar sereno da caixa preta do Black -... sobre a do cigarro, já nem sei dizer quantas vezes me castiguei por comprar mais de um box por vez. Desnecessariamente... sempre que o via reluzente e negro, nessa certa escuridão completa que não chega a ser sinistra, mas é hipnótica. Ela fala, tragando e soltando a fumaça que volta à atmosfera mais branca: – passei minutos na fila do caixa da padaria num estúpido “confessionário” – e as aspas que aqui se encontram são também desenhadas por ela no ar da noite, com as duas mãos suspensas no ar – interior. Cochichei a ouvintes imaginários minha admiração por este cigarro... falava do fumo, da densidade, do sabor mentolado com traços quase insensíveis de canela, que escapa dos lábios. Acho até mesmo que um dia, alguém, nem sei mais quando, comentou que também gostava dele. Me senti injuriada, estranha. Não queria mais ninguém para gostar dele como eu gosto. Retruquei dizendo que o melhor era beijar alguém que o tivesse fumado. Vê, daí, como as coisas tomaram rumos irreconhecíveis, ir-remediáveis – ela sorri pela última palavra, impulsionando o meu sorriso também – estática, lá, olhando o box.... – e baixa os olhos à altura dos pés, encobrindo a boca pelo joelho flexionado – observando a marca externa e tateando a interna, desenhada no meu... – rouba o olhar dos pés e o oferece a mim, sem concluir a frase – é isso. Restou você nos vinhos baratos comprados no sábado à noite, naquele supermercado 24 horas, quando passávamos horas sem decidir absolutamente nada, vagando Alices pelas prateleiras, trombando propositadamente uma na outra... tanto de você ainda nos comerciais entre filmes da televisão, quando eu já esperava aquele seu cochicho, rouco pelo silêncio, tramando e intertextualizando todas as idéias possíveis, dando razões a uma única razão só: estar aqui. Acho que você não precisa – ela se corrige a tempo, confundindo os tempos verbais e o meu tempo – não precisava se justificar tanto. Só a Loucura salva – ela fecha a fala com uma risada sarcástica.

- Eu só queria... – tento, mas ela interrompe. Os olhos despejam as pálpebras pesadas que, agora, parecem dar licença às palavras que virão:

- Ainda... ainda e para sempre ... – ela se pausa - isso porque eu descobri que a interseção entre “sempre” e “nunca” é um “ainda” infiel a qualquer uma das anteriores... enfim... – ela dá um novo trago no cigarro -... ainda é teu jeito de tocar a campainha: uma, duas, prolongamento, três, que me coloca com o ouvido a postos e ansiedade à flor da pele.

Ela volta o olhar para as nuvens e, antes de encostar o cigarro nos lábios, ela sussurra, bem próxima a ele, uma última sentença: “há tanto de você”.

Daqui, senta na posição de Lótus, minha vontade é de levantar e abraçá-la por trás, aprisionando-a nos meus braços que se fariam infinitos; beijar o imediato-abaixo de sua orelha, (re)pousando a ponta do meu nariz no seu ombro descoberto pela camiseta. Contudo, é pouca vontade para tanto receio, e o que me resta é beber um outro gole do vinho, que começa a ficar quente, dando mergulhos na admiração delicada, pulando do alto da torre de marfim dentro da qual a observo.

Ela permanece, sem dizer nada, insuspeita dentro de sua fumaça. Eu:

- Era ou é melhor colar os lábios numa coisa silenciosa, como o Black, do que me render às vontades e promessas que passavam ou passam pela minha cabeça. Planos coloridos de uma viagem para a Serra do Cipó, São Tomé das Letras, Milão, Rio, tanto faz o lugar, foram tantos mesmo; EZ Special tocando, os incensos de cereja camuflando minha-ou-sua-ou-nossa ansiedade mútua; meditações budistas – aponto o desenho do Ohm no meu anel de prata, no anular esquerdo - que terminariam frustradíssimas com os corpos muito mais próximos do Nirvana... vontades e inquietudes que eu queimava ou queimo na ponta do cigarro acesa, porque não sabia ou sei, ao certo, se poderia ou posso realizá-las.

Ainda que a semi-escuridão do quarto embace os contornos das formas, vejo o pequeno furo que resplandece na bochecha dela, vizinho íntimo de um sorriso branco. Ela não diz nada e apenas apaga a ponta do cigarro no cinzeiro marrom sob o criado-também-mudo. Levanta-se do sofá, sem calçar os chinelos, e caminha a passos cansados na direção da cama. Enquanto se levanta, provoca um distúrbio nas molas do sofá, excitando-as e me deslocando, o que faz com que a taça bamboleie em minhas mãos e ameace derramar o vinho. Desfaço o enlace das minhas pernas e estico a mão até o criado-mudo do outro lado do sofá, depositando a taça ao lado do cinzeiro, do qual ainda nasciam fracas linhas cinza da fumaça do cigarro. Quando termino de colocá-la ali e retorno ao meu lugar e olho para ela, deitada na cama, projeta atrás dos meus olhos um curta com todas as cenas de outrora que, embora minhas, habitavam este quarto, à minha espera, e só estando aqui é que elas podem me visitar, convidadas pela minha retina mediante a visão do corpo dela estendido ali, sobre o lençol branco da cama, com os braços cruzados atrás da cabeça:

... as pernas nuas, a blusa de botões - sem nada por baixo – abotoada displicentemente, as auréolas que colocavam em alto relevo a lisura da blusa, com suas duas pontinhas salientes, o cabelo solto que erotizava todo o resto, os violentados lábios avermelhados e brilhantes pela saliva da língua molhada, os arredondamentos que desfaziam a geometria retangular da blusa...

Corre nas minhas têmporas uma gota de suor recém-formada que eu não ouso limpar. Ela bate com a mão espalmada sobre a cama duas vezes, me convidando a deitar. Eu obedeço: sento à beirada da cama, retiro os tênis e ela me ajuda a retirar o moletom, quando então desliza os dedos longos no meu pescoço. É breve, mas o suficiente para que ela sinta o úmido suor que desgruda do meu corpo. Ela se deita e vou com ela logo em seguida, afundando a maciez do colchão com nossos pesos. Fitamos o teto do quarto, com suas estrelas fosforescentes amarelo-esverdeadas coladas na superfície pintada de branco. Ouço um chiado vindo do lado dela, uma inspiração rouca, aparentemente molhada. Viro meu corpo de lado, no sentido dela, e vejo uma gota também salgada escorrer do canto agudo do olho: outra a qual eu não posso impedir. Percebendo-me atenta à lágrima, ela a recolhe com as costas da mão, de um lado e do outro do rosto. Assim, se vira também no meu sentido.

Ficamos algum tempo com os corpos paralelos estendidos sobre o lençol branco que começa a amarrotar, desenvolvendo mapas anatômicos da dela-boca-minha; rotas sinuosas que infringem as leis e os limites das roupas, cultivando jardins à flor da pele. Vezoutra, os percursos se cruzam na indução de um olhar que recomeça do finápice: os olhos. No último entroncamento, ela se levanta:

- Do que adianta isto agora? – ela se encaminha para o espaço vazio que o guarda-roupa faz com a parede, próximo à porta. Leva a mão ao pescoço e o contorna, terminando-a volta na nuca.

- Isto? – atravesso a cama e me sento sobre a beirada do lado no qual ela estava. Observo-a se distanciar e encostar naquele espaço limpo da parede.

- É. E não finja que não sente. Não hoje e nem agora.

- Eu sinto isso... – e caminho até o corpo dela, abandonando a cama, enlaçando-a pela cintura, infiltrando minhas pernas entre as pernas dela, colocando minha boca no imediato-abaixo da sua orelha, pressionando meu corpo contra o dela em um abraço térmico- laços.