7
- Tenho essa pressa.
- Você tem mais do que pressa...
- O que eu tenho, então, se não é só pressa?
- É também e mais do que pressa – bebeu da cerveja esquecida no copo plástico, fazendo pausa mansa com sabedoria no sabor. Você anda em fuga, correndo não se sabe para onde, vai indo sem saber como... – e balançou a mão livre no ar, como se desanuviasse uma fumaça, empurrando-a para frente - se reunindo numa noite, se desmembrando pela manhã.
- Se andamos – observou-a, como quem se reinventa - saímos de um ponto. Se eu ando mais rápido – pausa e desvio de olhar para a boca da ouvinte - é por pressa desse próximo.
- Você anda não como quem saiu – resposta concisa no olhar de Maísa -, mas como quem quer chegar.
- Você quer chegar também, não quer? – palavras mínimas num momento largo de sentimentos no fundo do copo de cerveja nas mãos de Teresa.
- Eu não. Chegar é sempre amanhã e amanhã é nada, estrada de ferro para o seguinte sem chegada. Paradoxo do andarilho.
- Não andar é o mito da caverna de Platão, medo do desconhecido.
Não se entreolharam mais; Tereza se recostou no sofá, cruzando as pernas e reajeitando a roupa, não permitindo ao tecido ficar um centímetro a mais perto dos joelhos, limite da saia no ápice da coxa morena, enquanto Maísa separou as pernas e já apoiava as mãos sobre o joelho para se levantar. Dividia, uma, a atenção da outra com o movimento dos convidados na festa, alcançando com os aguçados ouvidos um murmúrio de conversa à direita, reconhecendo um casal abraçado no outro sofá verde à esquerda do lounge especialmente decorado para aquela solenidade GLS. Uns amigos em comum passavam e davam risadinhas com as bocas abertas e bêbadas, alternando com as pontas dos dedos uma reta invisível Maíza-Teresa-Tereza-Maísa. Elas sorriram e logo olhavam em sentidos opostos, pessoas opostas. Maísa se levantou, foi buscar algo como desculpa para abandonar o sofá. A outra, imóvel, procurou a bolsa atrás de umas almofadas e achou o cigarro amassado, sem encontrar o isqueiro. Uma terceira mulher se aproximou, fogo na ponta de um palito de fósforo: Teresa ofereceu o rosto com o cigarro preso nos lábios em “C” deitado, parábola com concavidade para cima; tragou duas vezes até acender o canudo branco. A dona do fogo balançou o fósforo no ar, jogou-o longe e, sem pedir licença, sentou-se ao lado direito dela, lado inverso de onde Maíza havia saído. Das caixas de som, saiu a voz rouca do Legend “we just don’t care, we just don’t”, as mulheres balançaram os cabelos soltos, os homens bateram os sapatos engraxados contra o piso marcando o tempo do bumbo. Embora soubessem o que John falava, ninguém entendeu o que ele realmente dizia. Iluminação decaiu, a noite se aproximou, foram acesas luminárias amarelas e vermelhas, pendentes do teto por um fio fino e os corpos naturalmente se aproximaram, boca com boca, inferno e céu. O sussurro das vozes amenizou a intensidade, só uma gargalhada ou tosses desmedidas rasgavam o zum-zum-zum velado das pessoas. Maísa, num dos apótemas do hexágono irregular inscrito num círculo de amigos, conversava com todos, mãos escondidas nos bolsos, ombros relaxados. Quando lhe perguntavam onde estava Tereza, desconversava dizendo que estava por aí, não suportava quando ela fumava descontroladamente, não sabia dançar, bebia demais, flertava insuportavelmente igual às vezes em que elas flertaram, lá naquele princípio e ante-princípio de tudo. Era suportavelmente doloroso vê-la exatamente igual, sem qualquer marca sua nela, tela em branco. Não disse nada, contudo. Apenas inclinou a cabeça e sorriu leve, sem graça, olhando Teresa sentada no sofá, mão estendida no encosto do móvel, com o terceiro cigarro nos dedos, cabelos constantemente jogados para trás ou preso atrás das orelhas dos brincos de duas argolas grandes; e a terceira pessoa com o corpo todo direcionado na direção da falante, olhos em faróis para o espetáculos da boca molhada de cerveja. Ciúmes? Alguns amigos do hexágono de comentários pensaram ser ciúmes, olharam para o sofá também sem mover músculo algum da face, desentendidamente atentos. Mas Maísa sabia que era só tristeza. Ciúmes e tristeza não se cumprimentam. Voltaram à discussão sobre a CPMF, destronamento de Plutão, cinema europeu, novela das oito, Tio Sam e Lenin, reencarnação.
6
Reencontraram-se, horas depois, no espelho do banheiro. Maísa saia de dentro de uma das cabines, ainda fechando a braguilha da calça, lutando contra a dificuldade do botão muito maior do que a casa. Tereza retocava o batom, espremendo os olhos, lutando contra a imprecisão proporcionada pelos milhares de mililitros de cerveja. Demorou um tempo até que se reconhecessem pelo espelho. Teresa observou que a outra tinha dificuldades com a calça, olhou com ironia para os braços magros de Maísa que tensionavam as veias contra a pele com força entusiasmada para abotoar a calça. Não parou de passar o batom, mas acelerou o ritmo; esfregou um lábio no outro e com a ponta do mindinho limpou as manchas que evadiam dos lábios. Guardou, com cautela, o batom de volta à bolsa, apoiou-se sobre a pia com as mãos na borda, batendo a unha pintada de vermelho no mármore preto.
- Vem cá – e, sem abandonar o corpo da pia, meteu os dedos dentro da calça ainda aberta de Maíza e puxou-a para perto de si. Fitava-a nos olhos e, com delicadeza, concluiu a tarefa de abotoamento da calça. Ainda deslizou as mãos do abdômen inferior de Maísa até a lateral dos seus quadris, sem encontrar uma mão na outra, apenas confortando-a no espaço preciso do corpo entre as palmas das mãos abertas. No reflexo do espelho, Maíza viu as costas expostas de Teresa, sem marcas de sutiã, apenas leves traços de um corpo magro e bonito, desvendado pela displicência da blusa cinza caída às costas. Posicionou, então, as duas mãos sobre os ombros desnudos de Tereza, massageando-os com leve pressão, caminhando com as pontas dos dedos curtos até o pescoço, escorregando e subindo o declive da nuca. Penetrou os dedos nos cabelos macios daquele corpo anestesiado pelo álcool que, agora, lançava as mãos para mais atrás do quadril dela, prendendo os dedos nas presilhas da calça feita para o cinto. Brincou com os cabelos escuros de Tereza até fazê-la fechar os olhos e mostrar a sombra clara pintada sobre as pálpebras dos cílios longos e também retocados. Era uma mulher tão bonita, Maísa pensava quase sorridente, imaginação transitória entre o “tão” e o “bonita”, embalada na embriagez que exalava do corpo entregue de Teresa. Era uma mulher tão envolvente, Teresa inspirava abrindo as narinas, memória mergulhada no “envolvente”, reconhecendo o perfume antigo do corpo. Alguém entrou no banheiro e o som do ambiente conturbado lá fora sulcou a atmosfera tépida do banheiro. Despertou-as da condição encantada em que estavam. Desenlaçaram-se. Uma buscou a bolsa sobre a pia, outra foi lavar as mãos e o rosto. A porta arranhou no chão, na saída da última.
5
Maíza dançava: corpo solto no ar, cabelo preso pelo próprio cabelo num coque em forma de caracol; silhueta brincando com as formas, boca aberta de onde saiam onomatopéias álibis de um sentimento bom. A música era trance, mas ela cantarolava:
Como fosse um par que
- Tenho essa pressa.
- Você tem mais do que pressa...
- O que eu tenho, então, se não é só pressa?
- É também e mais do que pressa – bebeu da cerveja esquecida no copo plástico, fazendo pausa mansa com sabedoria no sabor. Você anda em fuga, correndo não se sabe para onde, vai indo sem saber como... – e balançou a mão livre no ar, como se desanuviasse uma fumaça, empurrando-a para frente - se reunindo numa noite, se desmembrando pela manhã.
- Se andamos – observou-a, como quem se reinventa - saímos de um ponto. Se eu ando mais rápido – pausa e desvio de olhar para a boca da ouvinte - é por pressa desse próximo.
- Você anda não como quem saiu – resposta concisa no olhar de Maísa -, mas como quem quer chegar.
- Você quer chegar também, não quer? – palavras mínimas num momento largo de sentimentos no fundo do copo de cerveja nas mãos de Teresa.
- Eu não. Chegar é sempre amanhã e amanhã é nada, estrada de ferro para o seguinte sem chegada. Paradoxo do andarilho.
- Não andar é o mito da caverna de Platão, medo do desconhecido.
Não se entreolharam mais; Tereza se recostou no sofá, cruzando as pernas e reajeitando a roupa, não permitindo ao tecido ficar um centímetro a mais perto dos joelhos, limite da saia no ápice da coxa morena, enquanto Maísa separou as pernas e já apoiava as mãos sobre o joelho para se levantar. Dividia, uma, a atenção da outra com o movimento dos convidados na festa, alcançando com os aguçados ouvidos um murmúrio de conversa à direita, reconhecendo um casal abraçado no outro sofá verde à esquerda do lounge especialmente decorado para aquela solenidade GLS. Uns amigos em comum passavam e davam risadinhas com as bocas abertas e bêbadas, alternando com as pontas dos dedos uma reta invisível Maíza-Teresa-Tereza-Maísa. Elas sorriram e logo olhavam em sentidos opostos, pessoas opostas. Maísa se levantou, foi buscar algo como desculpa para abandonar o sofá. A outra, imóvel, procurou a bolsa atrás de umas almofadas e achou o cigarro amassado, sem encontrar o isqueiro. Uma terceira mulher se aproximou, fogo na ponta de um palito de fósforo: Teresa ofereceu o rosto com o cigarro preso nos lábios em “C” deitado, parábola com concavidade para cima; tragou duas vezes até acender o canudo branco. A dona do fogo balançou o fósforo no ar, jogou-o longe e, sem pedir licença, sentou-se ao lado direito dela, lado inverso de onde Maíza havia saído. Das caixas de som, saiu a voz rouca do Legend “we just don’t care, we just don’t”, as mulheres balançaram os cabelos soltos, os homens bateram os sapatos engraxados contra o piso marcando o tempo do bumbo. Embora soubessem o que John falava, ninguém entendeu o que ele realmente dizia. Iluminação decaiu, a noite se aproximou, foram acesas luminárias amarelas e vermelhas, pendentes do teto por um fio fino e os corpos naturalmente se aproximaram, boca com boca, inferno e céu. O sussurro das vozes amenizou a intensidade, só uma gargalhada ou tosses desmedidas rasgavam o zum-zum-zum velado das pessoas. Maísa, num dos apótemas do hexágono irregular inscrito num círculo de amigos, conversava com todos, mãos escondidas nos bolsos, ombros relaxados. Quando lhe perguntavam onde estava Tereza, desconversava dizendo que estava por aí, não suportava quando ela fumava descontroladamente, não sabia dançar, bebia demais, flertava insuportavelmente igual às vezes em que elas flertaram, lá naquele princípio e ante-princípio de tudo. Era suportavelmente doloroso vê-la exatamente igual, sem qualquer marca sua nela, tela em branco. Não disse nada, contudo. Apenas inclinou a cabeça e sorriu leve, sem graça, olhando Teresa sentada no sofá, mão estendida no encosto do móvel, com o terceiro cigarro nos dedos, cabelos constantemente jogados para trás ou preso atrás das orelhas dos brincos de duas argolas grandes; e a terceira pessoa com o corpo todo direcionado na direção da falante, olhos em faróis para o espetáculos da boca molhada de cerveja. Ciúmes? Alguns amigos do hexágono de comentários pensaram ser ciúmes, olharam para o sofá também sem mover músculo algum da face, desentendidamente atentos. Mas Maísa sabia que era só tristeza. Ciúmes e tristeza não se cumprimentam. Voltaram à discussão sobre a CPMF, destronamento de Plutão, cinema europeu, novela das oito, Tio Sam e Lenin, reencarnação.
6
Reencontraram-se, horas depois, no espelho do banheiro. Maísa saia de dentro de uma das cabines, ainda fechando a braguilha da calça, lutando contra a dificuldade do botão muito maior do que a casa. Tereza retocava o batom, espremendo os olhos, lutando contra a imprecisão proporcionada pelos milhares de mililitros de cerveja. Demorou um tempo até que se reconhecessem pelo espelho. Teresa observou que a outra tinha dificuldades com a calça, olhou com ironia para os braços magros de Maísa que tensionavam as veias contra a pele com força entusiasmada para abotoar a calça. Não parou de passar o batom, mas acelerou o ritmo; esfregou um lábio no outro e com a ponta do mindinho limpou as manchas que evadiam dos lábios. Guardou, com cautela, o batom de volta à bolsa, apoiou-se sobre a pia com as mãos na borda, batendo a unha pintada de vermelho no mármore preto.
- Vem cá – e, sem abandonar o corpo da pia, meteu os dedos dentro da calça ainda aberta de Maíza e puxou-a para perto de si. Fitava-a nos olhos e, com delicadeza, concluiu a tarefa de abotoamento da calça. Ainda deslizou as mãos do abdômen inferior de Maísa até a lateral dos seus quadris, sem encontrar uma mão na outra, apenas confortando-a no espaço preciso do corpo entre as palmas das mãos abertas. No reflexo do espelho, Maíza viu as costas expostas de Teresa, sem marcas de sutiã, apenas leves traços de um corpo magro e bonito, desvendado pela displicência da blusa cinza caída às costas. Posicionou, então, as duas mãos sobre os ombros desnudos de Tereza, massageando-os com leve pressão, caminhando com as pontas dos dedos curtos até o pescoço, escorregando e subindo o declive da nuca. Penetrou os dedos nos cabelos macios daquele corpo anestesiado pelo álcool que, agora, lançava as mãos para mais atrás do quadril dela, prendendo os dedos nas presilhas da calça feita para o cinto. Brincou com os cabelos escuros de Tereza até fazê-la fechar os olhos e mostrar a sombra clara pintada sobre as pálpebras dos cílios longos e também retocados. Era uma mulher tão bonita, Maísa pensava quase sorridente, imaginação transitória entre o “tão” e o “bonita”, embalada na embriagez que exalava do corpo entregue de Teresa. Era uma mulher tão envolvente, Teresa inspirava abrindo as narinas, memória mergulhada no “envolvente”, reconhecendo o perfume antigo do corpo. Alguém entrou no banheiro e o som do ambiente conturbado lá fora sulcou a atmosfera tépida do banheiro. Despertou-as da condição encantada em que estavam. Desenlaçaram-se. Uma buscou a bolsa sobre a pia, outra foi lavar as mãos e o rosto. A porta arranhou no chão, na saída da última.
5
Maíza dançava: corpo solto no ar, cabelo preso pelo próprio cabelo num coque em forma de caracol; silhueta brincando com as formas, boca aberta de onde saiam onomatopéias álibis de um sentimento bom. A música era trance, mas ela cantarolava:
Como fosse um par que
Nessa valsa triste
Se desenvolvesse
Ao som dos bandolins....
E como não?
E por que não dizer
Que o mundo respirava mais
Se ela apertava assim...
Seu colo como
Se não fosse um tempo
Em que já fosse impróprio
Se dançar assim
Ela teimou e enfrentou
O mundo
Se rodopiando ao som
Dos bandolins...
Esqueceu-se de Teresa, da dor, da CPMF, da decadência de Plutão, das contas, das correspondências, da idade, da identidade, do capitalismo, do comunismo, de ontem e de amanhã. Gingou no ar, maestra e regente da própria música: letra e melodia. Olhos fechados, alma aberta.
Tereza, de volta ao sofá: quarta pessoa, mesma anedota, quarta vítima, mesma técnica, quarto pedido, mesma recusa, quarto sentimento, mesma indiferença. Olhos abertos, alma fechada. Na memória, a polifonia da música e da gaita, com Blue e Elton John: “What do I gotta do if sorry seems to be the hardest word".
Esqueceu-se de Teresa, da dor, da CPMF, da decadência de Plutão, das contas, das correspondências, da idade, da identidade, do capitalismo, do comunismo, de ontem e de amanhã. Gingou no ar, maestra e regente da própria música: letra e melodia. Olhos fechados, alma aberta.
Tereza, de volta ao sofá: quarta pessoa, mesma anedota, quarta vítima, mesma técnica, quarto pedido, mesma recusa, quarto sentimento, mesma indiferença. Olhos abertos, alma fechada. Na memória, a polifonia da música e da gaita, com Blue e Elton John: “What do I gotta do if sorry seems to be the hardest word".
(Dados sobre a foto) Autor: Alexandre P. Site: Olhares.com