Sunday, September 23, 2007

Notícias Mínimas: ad eternum


Nos acordes do pensamento, os passos se constroem rápidos e, em instantes, eu chego à porta do lugar onde ela mora. Abandonando as desengonçadas avenidas, adentro ruas menores, que vão se estreitando à medida que me aproximo. As calçadas, antes tão geometricamente paralelas e indiferentes, já dão impressões de curvas e parábolas, tremem na proximidade do infinito dos bairros e se escondem na quebrada de um bar na esquina, na circunferência de uma praça ou na carroçaria de um carro estacionado. Alguns metros e a memória aciona aquele lóbulo da lembrança acalentada e reconheço-o: é um prédio pequeno, de quatro andares colabados e empilhados uns sob os outros, como se cada um estivesse cansadíssimo de suportar os outros superiores. Em cada nível, um conjunto de janelas de vidro rodeando o paralelepípedo de concreto, nas quais, por vezes, surge uma violeta roxa ou rosa debruçada sobre os metros que separam-na do chão; em alguma daquelas janelas pende um pedaço de uma mão, fazendo sua sombra contra a luz amarela que foge do teto imediatamente acima. Posso ver daqui apenas antebraço e mão, que leva um cigarro negro aceso, liberando raios cinzas na atmosfera de ar parado e velho das redondezas: a fumaça não vai longe e faz pequenos cogumelos cinzas no vão do quarto. Minha mão desliza sobre o bolso da calça e identifica o isqueiro: de uma cor verde enjoativa e de tamanho menor do que a palma aberta. Com ele preso entre os dedos e apontado para o prédio, vou contando os andares até aquele de onde surgira, há pouco, o resto de mão apoiado no parapeito da janela... um, dois, três, quatro. Ela mora no quarto andar, eu tenho certeza. Da última vez que estive aqui, desci as escadas devagar, numa manhã de sexta-feira cinzenta, apoiando nos corrimãos pretos com o resto de energia que sobrava, sentando entre um lance e outro de escadas, quando então engolia uma náusea dolorida que amargava a boca, fruto da madrugada anterior àquela manhã. É ela de novo, diz meus sentidos, mas advoga meu corpo no sentido contrário, refutando o choque de imagens. Mas, aquele pedaço de mão, aquelas unhas pintadas e principalmente aquele cigarro aceso... não pode, não é ela. Ainda com o isqueiro verde, aperto o botão do 402 e a campainha ressoa dentro da exata janela do cigarro negro. A mão lança o resto do cigarro ainda aceso pela janela aberta, fechando-a logo depois. E o que era apenas um pedaço de um corpo toma os contornos velhos, ainda que embaçados pelo vidro fosco; o desenho tão familiar e tão doloridamente perdido no tempo e na distância fulgura-se na moldura da janela e da minha memória. Dos minúsculos pêlos da minha nuca, nasce uma desordenação de sentimentos inquietos que impedem o movimento dos membros em qualquer direção. A iluminação de lá de dentro do apartamento, que chega até aqui, próximo à calçada, é interrompida pelo corpo que se levanta e aos poucos encobre toda a possibilidade de iluminação, caminhando em direção à luz e para longe da janela. O vulto, antes de sumir, pára alguns minutos no que eu suponho ser o vão de uma porta; dança com os braços no ar sobre a cabeça, construindo um coque desajeitado às pressas. Logo que o balé das madeixas se dá por terminado, ela abandona meu campo de visão, adentro o além da porta e da luz, deixando-me com os olhos enrugados pela luminosidade que agora, cruel, se lança numa briga contra minhas pálpebras. Meus olhos se fecham com uma certa força, mirando o chão apenas para evitar a claridade de cima. Guardo as minhas mãos e o isqueiro nos bolsos do moletom e, lá dentro, dou estalos de pulga com as pontas das unhas. O interfone cinza toma uma vida colorida com a surpresa da voz que brota dele:


- Alô?


E antes da consciência ou do arrependimento, eu verbalizo meu nome. Não respondo ao alô, não dou boa-noite, não me anuncio. O que sai é meu nome, dito assim, cru e vomitado, como se naquele caminho todo - que, afinal, duraram meses - , eu estivesse ruminando-o e fosse ele o grande resumo de tudo. Ela não diz nada e o que se ouve é o colocar do interfone no gancho, seguido de um barulho metálico, que abria o portão da frente do prédio. Empurro-o e fecho-o com uma leveza de jeitos que não é compatível com o pesar do caminhar até ali. Agora, os movimentos são anti-gravitacionais, pausados ao ponto de transbordarem uma fragilidade que antes não era possível se observar. O corredor acimentado corta o meio de um jardim florido e nas bordas do trajeto alguns arbustos de pingo-de-ouro me indicam o caminho. Até chegar à outra porta de vidro - a que me leva para dentro do prédio, vou andando com os braços caídos e as palmas das mãos abertas, tateando o verde frio das folhas na noite, ansiosas pelo orvalho da manhã.


Daqui, já é possível ouvir os passos jogados de chinelos contra a ardósia dos degraus. Uma sonoridade que não deixa dúvidas quanto a precisão do corpo. Do outro lado da porta, sua figura vem tomando contornos mais palpáveis, ainda que profundamente distorcidos pela porta de vidro, na qual hexágonos tortos tomam lugar e disvirtuam as trajetórias dos raios-de-luz. O perfume do cabelo recém-lavado contorna as frestas e brinca de pique-esconde com minha memória. A porta é aberta por ela com a mesma delicadeza dos meus passos e só depois de ter a certeza de que ela me olha, com aqueles mesmos olhos amendoadíssimos, é que desfaço a expressão forçosa das rugas contra a luminosidade e, de trás das lentes, sorrio o mais amplo dos suspiros. Ela move os lábios, não para falar, mas para lentamente os separar com a ponta da língua que concomitantemente molha os lábios e oferece a visão dos dentes brancos e grandes dentro da boca. Quando a língua se recolhe ao céu da boca entreaberta, os dentes roçam e mordiscam o lábio inferior, enquanto o corpo dela me dá passagem, convidando-me para entrar.


- Estranho... - ela diz, rodando a chave dentro da fechadura da porta, sem olhar para mim -... você chegou.


- Cheguei? - eu repito espantada, sem entender o motivo da escolha do verbo "chegar".


- Sonhei que você viria.


- De ontem para hoje?


- Sempre... - ela diz depois de um leve balançar da cabeça de um lado para o outro, negativamente.


Quando esta última sílaba é dita, confundi-se com ela o som da chave que tranca a porta. Passamos uns momentos silenciosos, nos nossos silêncios que se fundiam naquele último fonema. Ela é quem toma a iniciativa e sobe as escadas, impedindo qualquer precipitação do meu corpo sobre o dela. E, como sempre, inevitavelmente, vou atrás.


- Sei que é tarde... - eu falo para desembaraçar as vontades que se engalfinharam na garganta.


- Nunca é tarde - ela diz no espaço de tempo entre a subida de um degrau e outro -, ou talvez seja. Não faz mal, não faz mal. Gosto dessas visitas noturnas... - e ela diz, aproveitando o encontro entre duas escadas num patamar plano - me lembra um certo conto que um dia você me mostrou: Rubem Fonseca - e volta a retumbar o chinelo contra o piso.


- "Passeio Noturno"... - eu deixo que um sorriso escape.


Ela responde com um "hmrrum" amarrado em outro sorriso fugitivo, repetindo o título "passeio noturno", já emendando "é isso? Você está fazendo um passeio noturno?".


- Não... se passeio pressupõe que estar aqui é um acaso, não. - eu respondo enquanto ela escolhe a chave para abrir a porta sob o "402" entre as demais presas num chaveiro em forma de coração.


- Se não é um acaso, é o que então? - ela diz, sem desviar os olhos das chaves.


- Um caso - e me encosto na parede ao lado dela, olhando também para as chaves, para os dedos, para os braços, para...


Ela não me olha de volta, dissimulando uma seriedade em achar a chave. Quando a encontra, demora algum tempo para encaixá-la da maneira correta na fechadura, titubeando duas ou três vezes até destrancá-la. A porta se abre, rangendo as dobradiças que a mantêm presa à parede e ela, minha anfitriã, se encosta na parede ao lado, apontando com a mão aberta o interior da casa. Vou me descolando da parede, devagar, olhando para as pontas dos meus pés enquanto caminho e, quando chego no meio da sala, retenho os passos e espero o barulho da porta se fechando atrás de mim.


- Tempos que não venho aqui... - meu olhar em radar recapitulando todos os móveis de longas datas e eternas lembranças.



- Dois meses - ela quase exclama, repetindo agora num tom mais baixo, menos agressivo - dois meses ou algo assim. Quer beber alguma coisa? - e dá uma risada adentrando a cozinha, me deixando sozinha e estática no centro da sala - vinho?



Eu balanço a cabeça da esquerda para direita, repetidas e ligeiras vezes, contente não só com a lembrança da outra noite, mas com a lembrança dela, expressa pelo convite ao vinho. O movimento ainda existe quando ela volta da cozinha com a taça preenchida numa mão e a garrafa na outra.



- Cadê a sua? -recebo a taça da mão dela, tomando o cuidado de esbarrar meus dedos nos dedos dela.

- Ali - e aponta para o quarto semi-escuro no fim de um corredor pequeno.



Ela caminha à minha frente, acendendo as luzes que viriam, enquanto eu apago aquelas que deixamos para trás. A luz do quarto, contudo, ela não acende; há a claridade discreta de um aquário de um azul límpido, colocado sobre uma armação de madeira pregada na parede, dentro do qual peixes de um laranja vivo passeam margeando os limites impostos pelo vidro. No quarto: uma cama de casal com grandes travesseiros desorganizados, um sofá vermelho encostado à parede, imediatamente abaixo da janela; ao lado, um criado-mudo, celular, cinzeiro, chaves, isqueiro e o maço negro do cigarro; uma mesa abarrotada de livros e cadernos, um deles, em especial, aberto, no qual eu observo linhas escritas sem poder distinguir uma palavra sequer. Ela se encaminha em direção ao sofá e senta sobre uma das pernas, sem olhar em qualquer momento para mim, parada perto da porta. Ela pega o box, escolhendo um cigarro e colocando-o na boca. Antes que ela pudesse pegar o isqueiro, me lanço dentro do quarto e ofereço a chama do meu isqueiro. Ela se surpreende, forçando as pálpebras e me olhando hipnoticamente, enquanto aproxima o cigarro da chama e num só trago, acende em vermelho brasa a ponta do cigarro.



- Senta aqui... - ela retira uma almofada do outro lugar vago do sofá.



- Não sabia que você tinha começado a fumar... - eu olho atenta para os gestos que ela desenha com o cigarro na mão, terminando por apoiá-la no parapeito da janela.



Ela olha para o cigarro, com os olhos semi-cerrados devido à fumaça:



- Faz mal, eu sei...



- Não, não é isso... - eu interrompo com medo de intimidá-la e perder o prazer de observá-la naquele exercício que era meu também.



-... mas, é bom. Você bem sabe. Você quem me ensinou...



- É... eu sei. Só não esperava te ver fumando assim... sozinha.



Ela traga devagar, deixando a ponta do cigarro vermelhíssima, fechando os olhos dos cílios tão negros.



- Às vezes... - ela solta a fumaça rala pela boca-... fumo me olhando no espelho. Não é tão só assim, se você pensar bem...



- Gosto de fumar com você, você sabe - acomodo o corpo na maciez do sofá.



Ela me oferece o próprio cigarro aceso preso entre os dedos da mão. Acompanho o seu movimento e quando projeto minha mão para perto da mão dela, ela recua o braço e trocando o cigarro de sentido, ela se aproxima de mim e coloca o cigarro nos meus lábios. Espero que ela retorne ao lugar, para então aspirar o ar mentolado que o atravessa e impregna a boca. Ela observa a cena e me espera devolver a fumaça ao ar, em forma de um pequeno cogumelo de fumaça que, com as pontas dos dedos pintados, ela agarra e desmancha. O box é novamente aberto e, dessa vez, ela mesma se encarrega de acender o cigarro.

Sunday, September 16, 2007

Notícias Mínimas: ad eternum



Ainda posso visualizar algumas figuras rabiscadas no espaço branco que sobra da página da qual os vocábulos saltaram agora há pouco. Relampeiam na minha memória os últimos sussurros das palavras e suas sinalizações e naquele pedaço de papel que fica vazio delas, os desenhos dominam o sertão do branco sem linhas. Não há mais nada além do branco. Os desenhos já não alteram o conteúdo e apenas adornam o resto da folha de papel como carros alegóricos sem sentido algum ou de um sentido muito bem escondido. O homenzinho verde do sinal se acende e contra todas as luzes dos faróis, atravesso a rua, tomando o cuidado de pisar exatamente sobre as bandas brancas da faixa de pedestre. Os letreiros em neon dos bares e hotéis me dão boas sensações luminosas e disparam cruéis feixes de laser sobre a nuvem do meu caminhar amplamente ofegante e contido. Sou empurrada pela pressa de um grupo de ternos que conversa gritado, rugindo aos quatro cantos da avenida a sua virilidade verbal; com suas vozes retumbantes, seus casacos suspendidos pelas pontas dos dedos peludos apoiados nos ombros largos e seus passos extensos de pernas ligeiramente abertas, eles perfazem uma manada de touros engravatados numa tourada urbana e vil. São os carrascos que fazem de vítimas as pobres e frágeis mulheres que, por infortúnio da necessidade, andam também apressadas no sentido oposto, com suas curvas e sinuosidades à mostra. E elas deslizam pelas calçadas, passando intocáveis por mim, em seus caminhares quase cambaleantes e suas pernas em zigue-zague sob os saltos agulhas que trincam o chão por onde passam – e a neblina que desprende do corpo delas encobre todo o ar e só consigo abrir os olhos o suficiente para ver a rachadura no chão, momentos depois da passagem delas. A manada taurina passa, bufando e baforizando os hormônios e elas, ignorando em partes a bestialidade dos comentários berrados, não são capazes de esconder o inflar de ego: é o nascimento do sublime dentro do grotesco.

Acalantos que transitam dentro de mim, pulando de chakra em chakra, vão causando o formigamento das extremidades dos dedos e do nariz, o que facilmente é mascarado pelo frio dos ventos urbanos. Essa insensibilidade é o que mantém os joelhos angulados sempre à frente, num caminho desabilitado de orientação. Penso nela, ou melhor dito, tento pensar nela. Sempre que os contornos daquele rosto delicado, desenhado na minha alma com a ponta de um lápis de saudade – os lábios de coração levemente vermelhos, o nariz arredondado na ponta, as sobrancelhas grossas, o olhar amendoadíssimo, as orelhas cobertas por voltas e cachos do cabelo negro – ... sempre que esses traços desembaçam aquela névoa de pretensões que eu crio para o momento com ela, uma forte dor abortiva me joga contra uma escuridão feroz, um buraco negro severo que não me permite precipitar a imagem dela nem mais um segundo sequer, ainda que essa formação seja apenas o resto do avesso de um sentimento e justamente por ela, ainda alcanço novos quarteirões.

Retiro as mãos dos bolsos do moletom, experimentando o correr do ar gelado nas frestas suadas dos dedos. E penso: e se doer? E se quando formos nós, passarmos a não ser mais nada?, e se o que eu tenho é exatamente esse não-ter e tê-la, finalmente, seria, fatalmente, perdê-la? E se doer de novo, quando, em minhas mãos, ela se for, sem que eu saiba capturá-la de volta do ar?, e se, então, eu capturar e deixá-la presa para sempre a um "nós" que nem chega a ser meu e nem dela? E se doer e, doendo, eu jamais possa ver a beleza de estar, enfim, nos braços que tanto desejei e por medo de tanta ou mais dor, eu também for embora, com as mãos suadas dentro dos bolsos e os dedos presos uns nos outros, sem nada entre eles? E se doer? Se doer – diz uma voz mansa no lado direito dos meus hemisférios -, será porque você amou demais. E se doer, então, está tudo bem.



Referências às fotos: "Lisboa"; autora: Ana Franco, site disponível em link da foto. "A caminho..."; autor: Avelino Oliveira, site disponível em link da foto. Fonte: Olhares.com

Sunday, September 09, 2007

Notícias Mínimas (continuação)


Chaves, corredor, elevador, andar, andar, andares. Passos, porta, porteiro, portão, rua. Passo rápido pelos antros do prédio, sem despistar a minha insatisfação perene com o alheio. Desço o último lance de escadas contando os degraus com as pontas dos pés, com o sabor de criar uma distância concreta entre o meu mundo e esse mundo de cá. Já na calçada, deslizo a mão sobre a calça jeans, conferindo o isqueiro e o telefone celular dentro dos bolsos, enquanto a outra mão vaga apóia-se sobre o peito, averiguando se eu também levo um pouco de coragem; ajeito alguns fios de cabelo, limpo as lentes dos óculos com a beirada da blusa branca de malha desajeitadamente encoberta pelo moleton azul-marinho, no qual, em seguida, enfio as mãos dentro dos bolsos laterais, apertando com os cotovelos as laterais do meu corpo. Uns pêlos se eriçam com um sopro mais forte provocado pelo passar apressado de um carro. Uma das mangas do agasalho, durante seu vestimento, fica presa à altura do antebraço, o que deixa o relógio à vista: divido meu olhar entre as horas e os pêlos eriçados. Esqueço-me do primeiro e esfrego a mão sobre os últimos, recolocando a manga no seu comprimento adequado.

Os joelhos vão, lentamente, se articulando e alavancando as pernas à frente, levando-me para longe da frente do meu prédio. Um caminhar que se desenvolve pesado e sem pressa, completamente alheio aos outros corpos que correm pelas calçadas, com suas sacolas marrons abarrotadas de enlatados, sonhos vendidos e angústias empacotadas. Eu não tenho pressa de chegar, repito com o queixo colado ao peito, aproveitando o hálito quente que adentra o moletom pela gola da blusa; só consigo não pensar e repetir cegamente uma frase ou o trecho de uma música, que toca entre uma padaria e um bar, ou aquele certo trecho daquele certo poema que ficou guardado para aquele certo momento. Não há tempo, aqui dentro, para pensar. Só há esse vazio doloroso que quer acelerar os passos e lançar meu corpo contra um carro, contra um outro corpo ou contra mim mesma: são opções de um mesmo destino; há um leve desespero que entala na garganta e promove o leve fechar das pálpebras, entre um cruzamento e outro, quando a respiração se faz pausada e intensa, no exato segundo em que o perfume daqueles cachos negros do moleton rosa, por crueldade do ocaso, margeia meus sentidos e penetra a minha superfície fria, recordando a verdadeira precisão de me trazer desse estágio letárgico de vida. Parada com esse leve inspirar durante a espera do passar dos carros e de seus faróis ofuscantes, relembro uma das várias folhas brancas que jaziam no apartamento; singularmente, ela abraça umas frases perdidas, geradas quando ainda havia brasa no cigarro. Esforço a memória e, inspiradas por essa minha energia, as palavras e os pontos saltam do papel e lançam suas asas velozes e veludas sob o ar inóspito da noite desta cidade, plainando sobre os prédios, dobrando ruas e edifícios, dando piruetas e fazendo acrobacias, culminando-se com um mergulho acentuado, quando, então, pousam ordenadamente, como um bando que vem chegando numa certa hierarquia, sobre os meus ombros, onde, enfim, criam mãos brilhantíssimas e com elas, aproximam-se dos meus ouvidos e me cochicham suave o que vieram assobiando:

“Há muito sufoquei a vontade de dizer o quanto eu quis. E ainda quero. Como se não olhar para esse meu desejo me libertasse dele, evitei todas as maneiras de relembrar os calafrios que outrora me desnortearam, colocaram-me à beira de uma verdade tão pungente que a minha única saída foi afastar sem precedentes. Hoje, com as lembranças em pedaços, como um espelho recém quebrado pela força de um soco descontente, eu me desfaço em reminiscência e me deixo lá, no mesmo quarto, com o mesmo incenso de cereja, com a mesma insensatez, com os exatos olhos inquietos que fogem à procura dos outros olhos. Jamais voltará, eu sei. Ela é tudo o que me restou de intocável e só me resta viver à custa de uma memória afetiva. Ainda ergo a mão até a altura dos cabelos, desembaraço-os com as pontas dos dedos penetrantes e faço fé de que ainda, um dia, ontem ou amanhã, serei capaz de deixá-la a cargo da minha memória apenas, e não dos meus sentidos, do meu corpo, do meu desejo e do meu arrependimento. Acreditei, por tanto tempo, que ir é sempre a melhor escapatória. Ela me deu o xeque-mate: posso dar quantos passos forem para longe dela, estarei sempre ali, com os dedos entrelaçados nos dedos dela, na eminência da minha felicidade; em nós atados, muito bem atados.”

(...)