E eu sou praticamente invisível
Temos nossas canções
E alguns recados na porta
Promessa de dias melhores"
Notícias para Honey - Dinartes (composição André Zitto/Rodrigo Chaise)
À meia-luz: uma tosse seca arranhando a garganta, meia dúzia de livros jogados pelos sofás e mesas, canetas e lápis espalhados sobre as folhas brancas e impacientes. A ponta preta de um cigarro enterrado em meio às suas próprias cinzas, enquanto o isqueiro transparente brinca nos meus dedos, de um lado para o outro; um calendário sobre a geladeira da cozinha, com seus números indistinguíveis e seus feriados marcados em caneta marca-texto rosa. A escuridão sem estrelas de um tapete negro sobre os prédios fugidos ao alcance da minha visão. Diálogos privados numa esquina distante e passos indiferentes na rua à frente revelados pelo silêncio das ruas pacatas de um feriado; o box preto de um cigarro, no qual a réstia de luz amarelada de um abajur muito mal posicionado ao canto da sala se reflete. Um copo sujo de café próximo aos pés do sofá que atrai minúsculas formigas no seu trabalho fabril de achar alimento. Deitada com o rosto colado ao tecido sintético do estofado, deixo que o peso da minha mão a mantenha próxima ao chão e com a ponta do isqueiro preso entre os dedos indicador e polegar, mato uma a uma todas as pequenas formigas, desenhando no chão um círculo de morte ao redor da base redonda do copo de vidro transparente. Acendo e apago a chama do isqueiro, alguns centímetros do meu rosto, iluminando as órbitas oculares úmidas e ricas em vasos dilatados e avermelhados. Observo a chama intensa e brilhante, até que a ponta do meu dedo polegar se exaure, e então a labareda regride para dentro do corpo translúcido do isqueiro. Fecho os olhos e a luminosidade dela ainda é visível no tapete escuro sob minhas pálpebras.
Vozes do andar de cima anunciam uma chegada noturna de algum lugar muito alegre e risonho. Palavras povoadas de uma alegria fugaz e de uma ansiedade tremenda aceleram o diálogo e acentuam as risadas, deixando essas últimas à beira do nervosismo. Barulhos de saltos e sapatos contra o piso de madeira. Uma voz rouca e grave, outra adocicada e aveludada, ambas amortecidas pela largura do concreto que separa o meu apartamento do apartamento de cima. Elogiam-se... silenciam-se. Ligam o chuveiro e a energia que exala do meu abajur envelhecido ameaça desequilibrar, cochila, diminui de intensidade, mas volta a si rapidamente, como se lutasse contra um sono irrecusável. Ligam também o som, na exata mesma rádio do meu rádio-relógio, mas com uma intensidade muito maior: acaba por sufocar o chiado do meu simplório aparelho. Olho pro teto, para o bulbo esférico que protege a lâmpada e para os fios metálicos que escapam de suas redondezas e um desconforto se precipita da minha conveniente morbidez. Ajeito o travesseiro entre as pernas, alongo o pescoço, estralando-o de um lado para o outro. Levo um novo cigarro à boca e tomo-o entre os dentes sem acendê-lo. A brincadeira com o isqueiro é divertida e o cigarro permanece intacto, apoiado nos meus lábios secos e trincados.
Então, eu penso e paro. E penso tanto e paro tão pouco que construo lendas e capítulos de uma história pitoresca e onírica: assino com a memória e as promessas. Surgem apáticas teorias de evolução e frases construídas entre soluços sequiosos; medito sobre um encontro acidental, numa avenida longínqua, num dia cinzento e frio: ela vem caminhando em minha direção, dentro de um agasalho rosa claro, com os cadernos abraçados ao peito. Uma pequena presilha adorna os cabelos escuros e abundantes que se derramam da cabeça às costas, deixando algumas mexas onduladas suspensas no ar, ao sabor do embaraço. Um vento leve revolta os cachos e eles se revelam no ar, desbravando o princípio do precipício de uma nuca delicada... enquanto eu, com os cabelos presos num rabo-de-cavalo impecavelmente preso, observo-a se aproximar, por cima dos óculos; ensaio um movimento com a sobrancelha, seguido de um leve levantar dos olhos à altura dos olhos dela. Ela sorri, exatamente como sempre sorriu, com a clareza do desejo que eu julgo palpitante – porque assim também se configura em mim. O pensamento se espanta com a intensidade e foge, me jogando contra a realidade suada do meu rosto colado ao sofá. A moça dos cabelos ondulados e do moleton rosa acena, no nosso último momento, ofuscada pela luz real do abajur, com seus dedos longos, acompanhada pelo sorriso adimensional que se estampa no seu rosto pálido pela minha imaginação em retirada, cantando o último trecho do mais recente bolero. De volta à realidade mundana, o cigarro ainda permanece sem fogo, preso entre os dentes.
“Não quero falar – e se for possível nem pensar - as coisas que não sei dizer (ou daquelas que não ouso). Não sei mais datar os acontecimentos numa escala clímax de sensações, para que ao final, sem fôlego, ainda me reste um sopro de saudade – e isso é isto: mergulhos profundos em piscinas de saudades para ver se acordo molhada de coragem de procura-la dentro e fora de mim. Já se foram horas e maços numa busca completamente interior de chegar a algum lugar ao menos próximo do meu algo-maior... chega! Houve tempo em que precisei de tempestuosas palavras e descrições megalomaníacas para ameaçar a sensatez cega dos bons tempos, tudo por um momento misericordioso de loucura criativa e desperta. Lancei olhares significativos e nada. Haja o que houver, sou sempre eu e termino assim. Nada além...” – eu medito mentalmente, sem aproximar, um centímetro se quer, cigarro e isqueiro...
“Desde que me descobri incansável, corro atrás do abatimento. Noites sem dormir, madrugadas adentro e fora de mim: cigarros amiúde, taças sujas, lençóis intactos, televisões acesas, livros grifados, chamadas perdidas, cadernos rabiscados, telefonemas inventados, diálogos imaginários” – retumbam no meu tímpano idéias silenciosas que eu grito dentro do vazio do meu
apartamento. Então, por um segundo, eu deixo que o rádio-relógio preto, de números vermelhos e geométricos e de vozes teatrais e músicas antigas, me conte uma história banal, uma notícia de realidade, um despropósito publicitário, um acontecimento invisível. Escuto e brinco com as palavras e com as asas das palavras, que ainda as mantêm no ar, ao alcance da minha imaginação, caçoando do meu desespero comedido. Com o flash de luz que faço com isqueiro, ainda posso ver umas últimas réstias e restos dos pensamentos que deixei há pouco e uma nuvem dourada de brocal paira cintilante sobre minha cabeça, onde antes flutuavam, à deriva, os pensamentos... a ponta do cigarro ainda marrom do fumo...
Sei que é noite pelos algarismos vermelhos no painel digital do rádio-relógio e pelos locutores que se revezavam na brincadeira teimosa e covarde de me dizer que as horas se passam e eu continuo aqui. Oito e alguma coisa. Bato o isqueiro contra o chão no número de vezes igual ao dos minutos. Na última batida, interrompo o movimento no ar, levo a mão à boca: tomo o cigarro entre dos dedos e coloco-o sobre a pequena mesa que sustenta o abajur. Salto do sofá já calçando os tênis e colocando o isqueiro no bolso da frente da calça. Atravesso a porta do meu apartamento-mundo-casulo, batendo-a fortemente contra as paredes de selecionado tom “branco gelo”. O estrondoso barulho é apenas um aviso às vozes do andar superior de que existe vida (ou sobrevida) sob os pés deles.
(...)
Vozes do andar de cima anunciam uma chegada noturna de algum lugar muito alegre e risonho. Palavras povoadas de uma alegria fugaz e de uma ansiedade tremenda aceleram o diálogo e acentuam as risadas, deixando essas últimas à beira do nervosismo. Barulhos de saltos e sapatos contra o piso de madeira. Uma voz rouca e grave, outra adocicada e aveludada, ambas amortecidas pela largura do concreto que separa o meu apartamento do apartamento de cima. Elogiam-se... silenciam-se. Ligam o chuveiro e a energia que exala do meu abajur envelhecido ameaça desequilibrar, cochila, diminui de intensidade, mas volta a si rapidamente, como se lutasse contra um sono irrecusável. Ligam também o som, na exata mesma rádio do meu rádio-relógio, mas com uma intensidade muito maior: acaba por sufocar o chiado do meu simplório aparelho. Olho pro teto, para o bulbo esférico que protege a lâmpada e para os fios metálicos que escapam de suas redondezas e um desconforto se precipita da minha conveniente morbidez. Ajeito o travesseiro entre as pernas, alongo o pescoço, estralando-o de um lado para o outro. Levo um novo cigarro à boca e tomo-o entre os dentes sem acendê-lo. A brincadeira com o isqueiro é divertida e o cigarro permanece intacto, apoiado nos meus lábios secos e trincados.
Então, eu penso e paro. E penso tanto e paro tão pouco que construo lendas e capítulos de uma história pitoresca e onírica: assino com a memória e as promessas. Surgem apáticas teorias de evolução e frases construídas entre soluços sequiosos; medito sobre um encontro acidental, numa avenida longínqua, num dia cinzento e frio: ela vem caminhando em minha direção, dentro de um agasalho rosa claro, com os cadernos abraçados ao peito. Uma pequena presilha adorna os cabelos escuros e abundantes que se derramam da cabeça às costas, deixando algumas mexas onduladas suspensas no ar, ao sabor do embaraço. Um vento leve revolta os cachos e eles se revelam no ar, desbravando o princípio do precipício de uma nuca delicada... enquanto eu, com os cabelos presos num rabo-de-cavalo impecavelmente preso, observo-a se aproximar, por cima dos óculos; ensaio um movimento com a sobrancelha, seguido de um leve levantar dos olhos à altura dos olhos dela. Ela sorri, exatamente como sempre sorriu, com a clareza do desejo que eu julgo palpitante – porque assim também se configura em mim. O pensamento se espanta com a intensidade e foge, me jogando contra a realidade suada do meu rosto colado ao sofá. A moça dos cabelos ondulados e do moleton rosa acena, no nosso último momento, ofuscada pela luz real do abajur, com seus dedos longos, acompanhada pelo sorriso adimensional que se estampa no seu rosto pálido pela minha imaginação em retirada, cantando o último trecho do mais recente bolero. De volta à realidade mundana, o cigarro ainda permanece sem fogo, preso entre os dentes.
“Não quero falar – e se for possível nem pensar - as coisas que não sei dizer (ou daquelas que não ouso). Não sei mais datar os acontecimentos numa escala clímax de sensações, para que ao final, sem fôlego, ainda me reste um sopro de saudade – e isso é isto: mergulhos profundos em piscinas de saudades para ver se acordo molhada de coragem de procura-la dentro e fora de mim. Já se foram horas e maços numa busca completamente interior de chegar a algum lugar ao menos próximo do meu algo-maior... chega! Houve tempo em que precisei de tempestuosas palavras e descrições megalomaníacas para ameaçar a sensatez cega dos bons tempos, tudo por um momento misericordioso de loucura criativa e desperta. Lancei olhares significativos e nada. Haja o que houver, sou sempre eu e termino assim. Nada além...” – eu medito mentalmente, sem aproximar, um centímetro se quer, cigarro e isqueiro...
“Desde que me descobri incansável, corro atrás do abatimento. Noites sem dormir, madrugadas adentro e fora de mim: cigarros amiúde, taças sujas, lençóis intactos, televisões acesas, livros grifados, chamadas perdidas, cadernos rabiscados, telefonemas inventados, diálogos imaginários” – retumbam no meu tímpano idéias silenciosas que eu grito dentro do vazio do meu
Sei que é noite pelos algarismos vermelhos no painel digital do rádio-relógio e pelos locutores que se revezavam na brincadeira teimosa e covarde de me dizer que as horas se passam e eu continuo aqui. Oito e alguma coisa. Bato o isqueiro contra o chão no número de vezes igual ao dos minutos. Na última batida, interrompo o movimento no ar, levo a mão à boca: tomo o cigarro entre dos dedos e coloco-o sobre a pequena mesa que sustenta o abajur. Salto do sofá já calçando os tênis e colocando o isqueiro no bolso da frente da calça. Atravesso a porta do meu apartamento-mundo-casulo, batendo-a fortemente contra as paredes de selecionado tom “branco gelo”. O estrondoso barulho é apenas um aviso às vozes do andar superior de que existe vida (ou sobrevida) sob os pés deles.
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(Dados sobre a foto: Yun fotografias de ação grátis)