Friday, August 31, 2007

Notícias Mínimas

"A cidade é muito grande
E eu sou praticamente invisível
Temos nossas canções
E alguns recados na porta
Promessa de dias melhores"
Notícias para Honey - Dinartes (composição André Zitto/Rodrigo Chaise)










À meia-luz: uma tosse seca arranhando a garganta, meia dúzia de livros jogados pelos sofás e mesas, canetas e lápis espalhados sobre as folhas brancas e impacientes. A ponta preta de um cigarro enterrado em meio às suas próprias cinzas, enquanto o isqueiro transparente brinca nos meus dedos, de um lado para o outro; um calendário sobre a geladeira da cozinha, com seus números indistinguíveis e seus feriados marcados em caneta marca-texto rosa. A escuridão sem estrelas de um tapete negro sobre os prédios fugidos ao alcance da minha visão. Diálogos privados numa esquina distante e passos indiferentes na rua à frente revelados pelo silêncio das ruas pacatas de um feriado; o box preto de um cigarro, no qual a réstia de luz amarelada de um abajur muito mal posicionado ao canto da sala se reflete. Um copo sujo de café próximo aos pés do sofá que atrai minúsculas formigas no seu trabalho fabril de achar alimento. Deitada com o rosto colado ao tecido sintético do estofado, deixo que o peso da minha mão a mantenha próxima ao chão e com a ponta do isqueiro preso entre os dedos indicador e polegar, mato uma a uma todas as pequenas formigas, desenhando no chão um círculo de morte ao redor da base redonda do copo de vidro transparente. Acendo e apago a chama do isqueiro, alguns centímetros do meu rosto, iluminando as órbitas oculares úmidas e ricas em vasos dilatados e avermelhados. Observo a chama intensa e brilhante, até que a ponta do meu dedo polegar se exaure, e então a labareda regride para dentro do corpo translúcido do isqueiro. Fecho os olhos e a luminosidade dela ainda é visível no tapete escuro sob minhas pálpebras.

Vozes do andar de cima anunciam uma chegada noturna de algum lugar muito alegre e risonho. Palavras povoadas de uma alegria fugaz e de uma ansiedade tremenda aceleram o diálogo e acentuam as risadas, deixando essas últimas à beira do nervosismo. Barulhos de saltos e sapatos contra o piso de madeira. Uma voz rouca e grave, outra adocicada e aveludada, ambas amortecidas pela largura do concreto que separa o meu apartamento do apartamento de cima. Elogiam-se... silenciam-se. Ligam o chuveiro e a energia que exala do meu abajur envelhecido ameaça desequilibrar, cochila, diminui de intensidade, mas volta a si rapidamente, como se lutasse contra um sono irrecusável. Ligam também o som, na exata mesma rádio do meu rádio-relógio, mas com uma intensidade muito maior: acaba por sufocar o chiado do meu simplório aparelho. Olho pro teto, para o bulbo esférico que protege a lâmpada e para os fios metálicos que escapam de suas redondezas e um desconforto se precipita da minha conveniente morbidez. Ajeito o travesseiro entre as pernas, alongo o pescoço, estralando-o de um lado para o outro. Levo um novo cigarro à boca e tomo-o entre os dentes sem acendê-lo. A brincadeira com o isqueiro é divertida e o cigarro permanece intacto, apoiado nos meus lábios secos e trincados.

Então, eu penso e paro. E penso tanto e paro tão pouco que construo lendas e capítulos de uma história pitoresca e onírica: assino com a memória e as promessas. Surgem apáticas teorias de evolução e frases construídas entre soluços sequiosos; medito sobre um encontro acidental, numa avenida longínqua, num dia cinzento e frio: ela vem caminhando em minha direção, dentro de um agasalho rosa claro, com os cadernos abraçados ao peito. Uma pequena presilha adorna os cabelos escuros e abundantes que se derramam da cabeça às costas, deixando algumas mexas onduladas suspensas no ar, ao sabor do embaraço. Um vento leve revolta os cachos e eles se revelam no ar, desbravando o princípio do precipício de uma nuca delicada... enquanto eu, com os cabelos presos num rabo-de-cavalo impecavelmente preso, observo-a se aproximar, por cima dos óculos; ensaio um movimento com a sobrancelha, seguido de um leve levantar dos olhos à altura dos olhos dela. Ela sorri, exatamente como sempre sorriu, com a clareza do desejo que eu julgo palpitante – porque assim também se configura em mim. O pensamento se espanta com a intensidade e foge, me jogando contra a realidade suada do meu rosto colado ao sofá. A moça dos cabelos ondulados e do moleton rosa acena, no nosso último momento, ofuscada pela luz real do abajur, com seus dedos longos, acompanhada pelo sorriso adimensional que se estampa no seu rosto pálido pela minha imaginação em retirada, cantando o último trecho do mais recente bolero. De volta à realidade mundana, o cigarro ainda permanece sem fogo, preso entre os dentes.

“Não quero falar – e se for possível nem pensar - as coisas que não sei dizer (ou daquelas que não ouso). Não sei mais datar os acontecimentos numa escala clímax de sensações, para que ao final, sem fôlego, ainda me reste um sopro de saudade – e isso é isto: mergulhos profundos em piscinas de saudades para ver se acordo molhada de coragem de procura-la dentro e fora de mim. Já se foram horas e maços numa busca completamente interior de chegar a algum lugar ao menos próximo do meu algo-maior... chega! Houve tempo em que precisei de tempestuosas palavras e descrições megalomaníacas para ameaçar a sensatez cega dos bons tempos, tudo por um momento misericordioso de loucura criativa e desperta. Lancei olhares significativos e nada. Haja o que houver, sou sempre eu e termino assim. Nada além...” – eu medito mentalmente, sem aproximar, um centímetro se quer, cigarro e isqueiro...

“Desde que me descobri incansável, corro atrás do abatimento. Noites sem dormir, madrugadas adentro e fora de mim: cigarros amiúde, taças sujas, lençóis intactos, televisões acesas, livros grifados, chamadas perdidas, cadernos rabiscados, telefonemas inventados, diálogos imaginários” – retumbam no meu tímpano idéias silenciosas que eu grito dentro do vazio do meu apartamento. Então, por um segundo, eu deixo que o rádio-relógio preto, de números vermelhos e geométricos e de vozes teatrais e músicas antigas, me conte uma história banal, uma notícia de realidade, um despropósito publicitário, um acontecimento invisível. Escuto e brinco com as palavras e com as asas das palavras, que ainda as mantêm no ar, ao alcance da minha imaginação, caçoando do meu desespero comedido. Com o flash de luz que faço com isqueiro, ainda posso ver umas últimas réstias e restos dos pensamentos que deixei há pouco e uma nuvem dourada de brocal paira cintilante sobre minha cabeça, onde antes flutuavam, à deriva, os pensamentos... a ponta do cigarro ainda marrom do fumo...

Sei que é noite pelos algarismos vermelhos no painel digital do rádio-relógio e pelos locutores que se revezavam na brincadeira teimosa e covarde de me dizer que as horas se passam e eu continuo aqui. Oito e alguma coisa. Bato o isqueiro contra o chão no número de vezes igual ao dos minutos. Na última batida, interrompo o movimento no ar, levo a mão à boca: tomo o cigarro entre dos dedos e coloco-o sobre a pequena mesa que sustenta o abajur. Salto do sofá já calçando os tênis e colocando o isqueiro no bolso da frente da calça. Atravesso a porta do meu apartamento-mundo-casulo, batendo-a fortemente contra as paredes de selecionado tom “branco gelo”. O estrondoso barulho é apenas um aviso às vozes do andar superior de que existe vida (ou sobrevida) sob os pés deles.

(...)




(Dados sobre a foto: Yun fotografias de ação grátis)




Friday, August 17, 2007

Se vis pacem, para bellum

Há silêncios preciosos.

Friday, August 10, 2007

Orange's flow




Juro: apertei os olhos tão forte que foi difícil recobrar a visão. Esfreguei-os com as pontas dos dedos, impedindo uma lágrima de se despencar, molhada de lucidez, enquanto o resto do corpo se estremecia no desespero da lembrança de você, inquieta em mim. Ainda de olhos abertos, era tudo tão escuro... há dias inteiros a sua espera, uma paciência mentirosa de quem espera o telefone tocar. Qualquer torpor de ouvir sua voz entre cinco e seis da tarde, quando o céu se entristece e me leva com ele. Observei, de cá, as minúsculas estrelas laranjas se acenderem dependuradas nos postes das ruas vizinhas. Juro: quis tanto. Prometo: quero, ainda e pra sempre, mais.

Saturday, August 04, 2007

Lisa, uma história felina (e verídica)




- Miaaaaaau...

Pensei ser da televisão.

- Miaaaaaaaaaaaaaaaau... – insistiu, pedindo a atenção.

Coloquei a televisão em mudo. Repetiu-se do lado de fora do prédio.

- Miaaaaaaaaaaaaaaaaaau... – agora mais irritado, quase gritando.

Corri até a janela, sem me preocupar em calçar os chinelos, apenas debruçando-me sobre a armação da janela. Esperei o próximo chamado.

- Miaaaaaaau....

Foi quando a silhueta saiu de baixo de um dos carros, já dentro da minha garagem. As patas que tocavam o chão acimentado, dando a ele a impressão de um carpete de veludo. Quando caminhava, os ossos e os músculos de suas costas se projetavam; alternavam-se nos movimentos flutuantes de subida e descida, elegantemente decorando o caminhar que se desenhava com tranqüilidade. As orelhas brancas e pontudas, mirando o céu, moviam-se de tempos em tempos, indicando-me que estava atenta, ainda que aparentasse uma certa indiferença ao lugar.

- Miaaaau... – disse, lançando o olhar riscado pra cima e mostrando os dentes pontiagudos na boca entreaberta – miaaaau.

Olhei o pequeno corpo branco da janela do meu segundo andar. Não disse nada, não me dirigi a ele, não estalei os dedos, não gastei meu humor fazendo onomatopéias: nada. Apenas observei-o daqui, gritando o mesmo “miau” repetidas vezes, com os olhos claros seteiros e apontados para cima. Pensei que implorasse qualquer coisa, um pouco de comida, quem sabe. Ameaçei descolar o corpo da janela e ir buscar-lhe um pedaço de carne. Na possibilidade de não me ver livre daquele som depois, permaneci, imóvel, apenas enquadrando aquele pequeno corpo branco numa fotografia mental. Era uma noite fria, a primeira noite fria de um inverno atrasado que chegava ao final de Julho. Uma corrente de ar entrou pela janela lateral e eriçou-me os pêlos das pernas. Fechei as janelas e em seguida as parnesianas, sem titubear. Sorri cansada, respirando lânguido pelas narinas, enquanto voltava para o sofá, ainda morno pelo contato prolongado do meu corpo. Gisele perguntou-me o que era. Respondi sem olhá-la, calculando os passos até ela. Sentei-me no exato lugar que havia abandonado, com a cabeça sobre o colo dela, entre as horas perdidas e abandonadas em frente da telinha azul colorido.

Apertei “play” e continuamos o filme. Na televisão 40 polegadas da Semp Toshiba, todas as cores de Almodóvar em “Carne Trêmula”. Na cena, Davi, o ator principal-sem-clichês: em óculos de armações pesadas e grossas, dentro de um carro vermelho fosco, com uma máquina fotográfica em mãos, transparecendo a ansiedade-raiva de estar fotografando momentos indiscretos de um casal adúltero, como se adquirisse a maior munição dos tempos contra os seus males e transtornos. Gisele comentou alguma coisa, soltando da boca falante bufadas de fumaça que se lançavam como cogumelos no ar. Não dei a devida atenção, mas sei que comentei qualquer coisa de volta, tomando o cigarro dos dedos dela e dando um trago longo. Desfiz das cinzas, batendo na lateral do cinzeiro que Gisele segurava com a mão parada no ar e, então, levantei o corpo, postei-me boca-a-boca e, quando nossos lábios se tocaram selados, devolvi o trago roubado para boca dela. Ela sorriu com os olhos apertados daqueles cílios-cortinas: expirou aquela língua cinza gasosa, iluminada de azul pelo aparelho de TV e que aos poucos se dissolvia no ar. O miado insistiu. Aumentamos o som do televisor, enquanto Davi se preparava para sair com o carro.

De sangue a sangue, de vida em vida, o filme terminou. O olhar de Gisele se cruzou com o meu, naqueles momentos seguintes do término da película, enquanto os créditos ainda passavam, nuns segundos inenarráveis de reciprocidade e proximidade. Afagou-me, já se levantando do sofá e espreguiçando o corpo a minha frente. O moleton azul subiu pouco acima do umbigo e revelou-o para mim, como se a própria Gisele me ofertasse um beijo ou uma mordida molhada naquele pedaço de corpo moreno. Ainda com a boca escancarada dos dentes grandes e milagrosamente alvos (haja visto tanto cigarro), com os braços angulados para cima, pilares das mãos que também se espreguiçavam, olhava para baixo, enrugando a pele sob o queixo. De novo: o sorriso ocular – em nós duas. Concertei o corpo. Fiquei à frente dela, já a abraçando pelas presilhas para cinto da calça jeans e, com as mãos presas nas voltas glúteas donde nádegas viram pernas, beijei-lhe redondezas do umbigo, mordendo suave, uma hora ou outra, para delírio e prazer, meu e dela, dela e meu, respectiva e reciprocamente. Ao final do último gemido, Gisele abaixou os braços e com as mãos já descansadas, carinhou minhas orelhas, dando um beijo superficial na minha testa descoberta pelo cabelo preso. Alguns passos para trás, dois à direita e caminhou para o banheiro, sem qualquer palavra. A televisão ainda insistia nos infinitos créditos, com tantos nomes e cargos e funções e importâncias. Refiz o rabo de cavalo dos meus cabelos, já abandonando a temperatura do sofá e adentrando o frio da sala, agora escura pela cor negra de pano de fundo das letras em movimento da televisão. Do lado de fora, pela janela, os retângulos e quadrados iluminados de vida, longe e perto. O prédio vizinho, com algumas janelas fechadas, outras abertas e ainda aquelas que expunham a vida alheia na vitrine urbana da cidade. Foi quando o miado vociferou do lado de fora, pela última vez. Uma réstia de vontade de descer as escadas e ficar vis-à-vis com aquele (ou seria aquela?) felino (ou felina) esquadrinhou a sola dos meus pés presos nos chinelos. Não houve movimento, nem menção. Continuamos os três corpos, separados por muitos obstáculos.

Gisele voltou do banheiro, com o rosto e alguns fios de cabelo ainda molhados, segurando a toalha amarelo-vivo nas mãos. Dois botões da sua camisete branca abertos, revelações de um colo que eu tanto beijei e tanto desejava beijar. Olhei o contorno dos seios enleados por um sutiã justo. Olhei sem de(i)scrição. Mordida de lábios, meu e dela. Jogou a toalha sobre a mesa de vidro pela qual passou enquanto caminhava na minha direção, já com as mãos sobre o terceiro botão, prenúncios do meu deleite. Próxima, jogou as mãos sobre o apoio do sofá, imediatamente atrás de mim, à altura dos meus ombros. Beijou molhado a ponta da minha orelha: morna e segura língua que brincou com os lóbulos, deixando os lábios para abraçar o resto. Desceu ao pescoço, até quase o ombro e sentou-se sobre meu colo, encaixando sua anca sobre a minha. Das pernas longas, senti a atenção e tensão das coxas, embora elas me apertassem pelas laterais. Sobranceira, soltou as mãos do apoio do sofá e atarracou-as na minha nuca, despreocupada se arranhava ou doía. Não houve movimento, nem menção minha. O único desbrave foi o da porta da sala se abrindo e por entre a fresta mal iluminada que aparecia, abandonava-me o prazer do corpo de Gisele e entrava o - outro - corpo felino e mais branco, nos seus poucos centímetros acima do chão. Saindo rápido de cima de mim e jogando-se rapidamente já sentada no sofá e de pernas cruzadas, Gisele abandonou seus dedos, deixando as marcas ardidas e - que eu supunha-vermelhas na minha nuca e voltou para sua suavidade suspeita, embora alguns fios de desejo invisíveis ainda atavam seu corpo ao meu. Todo esse movimento dela feito com o meu olhar ainda imóvel na fresta escura da porta da sala, de onde apenas a parte posterior daquela pouca silhueta alva aparecia. Do negro de lá de fora, veio a curiosa gata (sim, era uma gata, eu me certificava visualmente), inquiridora no seu andar ritmado e logo atrás, minha mãe, com suas sacolas brancas de supermercado, com seu olhar antropológico sobre a felina que ela mesma acabara de convidar a entrar.

- Quê isso, mãe? – eu gritei e, no tom, misturou-se alegria e dúvida.

Não respondeu. Continuou sorrindo, com as sobrancelhas arqueadas de uma menina sapeca na sua primeira década de vida.

- Uma gata! – respondeu por fim, a contragosto.

- Que é uma gata, eu sei!, – e corri até perto das duas recém-chegadas – até já tinha a visto há algum tempo, saindo de baixo de um dos carros da garagem. Miava demais. Mas, mãe! Você não gosta de gatos! – argumentei, por fim.

Não respondeu novamente. Colocou as compras sobre o balcão da cozinha, alheia a presença da gata que, àquela altura, já havia caminhado até os pés de Gisele e enroscava-se por entre as canelas dela. Acompanhei os movimentos absurdamente normais de minha mãe, na sua tarefa recreativa e terapêutica de providenciar o lugar certo de todas as coisas. Meus olhos mais abertos do que o normal, inquietos pelo movimento horizontal da minha cabeça insatisfeita.

- Você nem gosta de gatos!... ela vai ficar aqui? Imagina! Vai rasgar todos os sofás. Eles transmitem toxoplasmose!... – minha mãe enchia uma tigelinha laranja de leite, ausente das minhas súplicas por explicação -... me dá aqui essa tigela.

Com o pote sobre a palma da minha mão, caminhei alguns passos cautelosos até próxima a gata, próxima a Gisele. Sentei sobre os calcanhares e busquei a atenção do pequeno animalzinho pelo qual, inadvertidamente, todos já criávamos afeição (ou talvez só eu criasse e construísse um sentimento inexistente nas outras pessoas). Perto assim, notei que era uma gata extremamente branca, quase albina. As bordas dos olhos, das quais os cílios também claros saiam, eram róseas. O nariz unido a boca arqueada também apresentava manchas rosas claríssimas, como um batom borrado. Um derrame quente de carinho desceu da garganta e aqueceu-me o peito, fazendo com que colocasse a tigela no chão e lançasse as mãos para tocá-la. Parei a centímetros dela e, por medo da rejeição ou de uma bela mordida, apenas ofertei-lhe as costas da minha mão para que ela, a gata, se decidisse se eu poderia acariciá-la mais e melhor. Enfurnou sua cabeçinha sob a minha mão e deu um passinho feminino, para que a palma deslizasse, delicada, sobre seu pêlo branco e organizado. Abri a boca num sorriso de graça e olhei, logo acima, para Gisele, que também sorria - de deboche ou de ternura ou ambos.

Passou a noite em minha casa. Bailou por todos os quartos, subindo nas camas vez ou outra, dando voltas sobre o próprio corpo e deitando logo em seguida. Bebia o leite com a ponta de sua língua minúscula e rosa, fazendo círculos no líquido também branco. Recebia um afago e aproximava as pálpebras gostosamente, saboreando aqueles momentos de contato. Trançava entre as pernas humanas e das cadeiras, adentrava cantos apertados entre os sofás e móveis. Fazia da minha casa o seu universo particular. Gisele foi embora, oferecendo-se para levar a gata para a rua. Perguntei à minha mãe.

- Abra a porta e deixe que ela mesma se decida. Se sair, leve-a embora. Se não, arrume um cobertor e faça-lhe uma cama. - respondeu sonolenta, já debaixo das cobertas.

Gisele escancarou a porta, já pronta para tomar a gata no colo e irem embora juntas. Risonha, a gata caminhou com suas patas de algodão até o vão: olhou as escadas, o corredor e eu supus que também olhou para Gisele. Deu de ombros e, meia-volta, caminhava para dentro do apartamento de novo. Despedi-me com um beijo na bochecha de Gisele, enquanto ela me dava uma lista de coordenadas para o dia seguinte, onde nos encontraríamos, que horário eu iria buscá-la, em que lugares iríamos comer, fazendo-me prometer que ligaria logo que acordasse. Consenti a tudo, com uma das mãos repousadas sobre a maçaneta. Ainda perto da escada, mandou-me um beijo. Peguei-o no ar e mantive a mão fortemente fechada até que ela desapareceu no segundo lance de escadas. Abrindo lentamente cada um dos dedos, olhei para o nada da mão, justamente ali sobre as linhas da vida desenhadas na palma. Observei o sangue voltar às extremidades e enrubescer as pontas dos dedos e das unhas que, imediatamente antes, estavam amarelados. Com a mesma mão, reajeitei a armação dos óculos e fechei a porta.

Voltei ao sofá, sem notícias do paradeiro da gata. Fui até o quarto da minha mãe e ela e meu irmão se divertiam fazendo perguntas a gata que, sentada no chão, talvez também fizesse perguntas ininteligíveis a eles. Desliguei o aparelho de DVD, recoloquei nos canais normais e acabei por adormecer assistindo a um jornal qualquer, um desses de altas horas da noite. Acordei com o miado da gata, dessa vez, falado ao pé do meu ouvido. Com o corpo posudo sobre as quatro brancas patas, ela me fitava. Imóvel, mais um miado. Franzi a testa, sem entendê-la. Não miou mais. Apenas esperou que eu me levantasse, desligasse a televisão e rumasse para minha cama. Do sofá a cama: em transe e desmemoriado. A última cena que ficou foi a do seu corpo quadrúpede na porta do meu quarto, sentada perto da armação da porta. A luz amarela da sala atravessava os corredores e iluminava as costas da gata, projetando sua sombra no chão de taco envernizado do meu quarto escuro. Seu rabo dançava, de um lado para o outro, desenhando esse's no ar, como se, sendo um braço, me dava adeus. Ainda forcei as pálpebras, para não adormecer. Não houve movimento, nem menção. Foi a última vez que a vi.

Acordei pela manhã e o sol já se colocara bem alto no céu. Perambulei pelos cômodos da casa, na esperança matutina de encontrá-la ainda lá, no cobertor xadrez em vermelho e preto que eu havia preparado para seu repouso. A arrumadeira avisou que ela já havia ido embora. Logo que acordou, minha mãe saiu para o trabalho e consigo, levou aquele corpo branco e carente para fora, disse a mulher, sem a adjetivação, que é própria de quem sente e não de quem apenas conta. Houve sim, um alívio triste. Eu não precisaria prender a gata e nem a gata a mim. Foi a primeira que me deixou, pensei. Dói? Acho que não, é tranqüilizante. É melhor partir ou ficar? Não soube responder.

Voltava para cama quando o celular tocou e no visor, o nome Gisele piscava incansável e irritadiço, enquanto o réquiem de Mozart berrava do aparelho. Balbuciei alguns monossílabos enquanto ela desperdiçava opiniões naquela hora da manhã. Eu ri. Ela indagou. Reafirmei o riso e disse “bom dia, meu bem”. Ela acalmou-se e, com um sorriso telefônico propriamente silencioso, continuo o discurso. Busquei-a pela tarde e foi-se embora novamente pela noite. Numa noite, aliás, sem miados.

Dias depois, quando chegava ofegante a minha casa, vinda de suas voltas pela cidade, Gisele respondeu sincopada, entre um fôlego e outro:

- Acabou de passar um carro de propaganda por aqui, você não ouviu? Dizia assim:
“procura-se uma gata adulta de pêlos brancos, perdida no dia 26 de julho, no bairro da Graça. Atende pelo nome de Lisa. É muito dócil e afável. Informações pelo contato...” – terminou, vitoriosa, a fala.