Saturday, June 30, 2007

Por onde andará Lily Braun?


(Ainda está inacabado. O texto me pede mais e mais. Como o Bruxo soube fazer tão bem inúmeras vezes e é legado - ou seria feitiço? - dele em mim, "Por onde andará Lily Braun?" me escraviza, me cobra a continuação-satisfação, pois eu sou, além de narradora-voyeurista - prefiro ao simplório observador e sobre isso, escrevo depois -, uma leitora borbaniana* e, como minha cara Bárbara, também estou esperando, olhando pra tela, que é minha porta, com as pontas dos dedos também trêmulos, lábios dela. Estamos esperando o texto que virá me dilatando, catársico, independente, abortivo. Será ele por ele e, maternalmente, morrerei depois, anestesiada e sabe-se-lá se satisfeita.)






(E o leitor ficou desanimado, haja visto dois preâmbulos. Pensou, categórico, segurando a língua e ameaçando fechar o site, que este ser que vos fala é desnecessariamente explicativo, será leitura enfadonha. Se assim for, seja meu convidado à saída. Veja bem, se eu não introduzir certas perguntas e desmascarar a leitura inútil, logo agora, você terminará como Lily Braun, "nunca mais romance". Considere estas poucas linhas a âncora que dará sustentabilidade. Entrarás engatinhando nos terrenos de Bárbara e eu já estou crescida e enraizada lá. Pense, leitor atento, com seus dourados botões, por que será que toda boa história termina com um ponto de interrogação, visível ou não?)





Enquanto apertava com uma das mãos o gargalo da garrafa verde-escura de vinho tinto, levava, entre os dedos da outra mão, a taça arredondada ainda marcada com o batom que acabara de passar: um vermelho intenso, vulgar e barato, marcado na borda, sombra dos lábios trêmulos; o desenho avermelhado não se deixava confundir com o roxo do vinho, que sujava o interior da taça, indicando que a bebiba ficara ali tempo suficiente para impregnar o vidro. Bárbara encheu mais uma vez a taça, até um quarto do recipiente e tomou-o um gole só, deixando escorrer uma gota atrevida pelo canto da boca. Segurou o líquido na boca durante algum tempo, o que deixava as bochechas inchadas e, aos poucos, deixava que fios quentes da bebida escorressem garganta abaixo. Quando se deu por terminada, apoiou garrafa e a taça em cima da mesa de madeira, bem ali no canto esquerdo da sala, justaposta à porta que dava na cozinha. Olhou-as - sem as ver - por um breve segundo, para em seguida fechar fortemente os olhos e perceber que os pés se despediam do assoalho e o corpo ameaçava tombar; balançou a cabeça, desorganizando algumas mexas do cabelo castanho claro, sem desajeitar as idéias que, poucas, ainda tinham algum lugar. Um olhar despistado contra o relógio de pulso, numa batalha silenciosa de quem-vence-quem pelo cansaço, pela silenciosa espera, pela inafiançável esperança, pela infinitude milimetrada. Já se passaram vinte e três minutos e teimosos segundos do horário previsto para a chegada e, inevitavelmente, os olhos de Bárbara voltam inquietos para a porta. Será que viria? Tornava a encher outra taça até um quarto do conteúdo e tomava o vinho num gole único, sedento e descompassado, que levantava seu colo ao ritmo dos goles ferozes. O afastar dos lábios agora molhados da taça, imprimiu, em outro lado da borda, o mesmo desenho de tom vermelho, entretanto mais claro; os olhos que, perdidos, perambulavam entre garrafa, porta, relógio, garrafa, porta. Os ouvidos estavam especialmente sensíveis a qualquer ruído externo e acabavam por criar ondulações alegria-raiva, quando alguma porta de carro se fechava do lado de lá da porta da frente, e ela se retocava, felina, olhando para o espelho que, distraído, olhava também para ela.

Ameaçou levar os dedos à boca e roer-lhes as unhas, mas ao aproximá-las do rosto e ainda com uma dificuldade visual causada pelo álcool, viu como estavam bem-feitas e delicadas: os contornos visualmente uniformes, o brilho do esmalte cintilante contra a pouca iluminação da sala. Lembrou-se de que levara tempo até mantê-las de um tamanho adequado, posto que passara tempo demais roendo-as, ao ponto de se ferir e acabava por adicionar um pouco de diversão ao pouco de sangue que saia e ardia. Silenciosa até para os pensamentos – como se o desejo assumido despertasse um azar e quebrasse qualquer possibilidade de felicidade futura, ela sonhava pouco e breve, anestesiada, acolhendo tenra, o que de bom podia e se permitia ter nos suspiros dos seus devaneios–, torcia para que suas mãos, especialmente as unhas, fossem notadas. Acreditava num carinho recôndito daquele que lhe prestasse essa atenção e, se alguém, então, assim o fizesse, poderia visualizar a áurea feminina de Bárbara cruzar as pernas primeiro e então os braços sobre o peito, esboçar um sorriso senhor da sedução dissimulada, no canto do lábio, plenamente satisfeito; abandonaria-o apenas para balbuciar falácias para si mesma, com a boca entreaberta, na qual podia se ver a língua rósea inquieta e viscosa.
Ainda de pé e ligeiramente desequilibrada, apoiou-se na mesa de madeira, forçando o corpo sobre ela e ela, a mesa, forçava o seu sobre a parede e assim, mulher, mesa, parede tornavam-se um só ser, estático. Fitava as pontas dos dedos longos e alvos como se ali residisse todo seu empenho em mudar. Riu-se, levemente histérica, provocando algum abalado no equilíbrio da mesa, enquanto olhava para as mãos. Um outro gole de vinho, agora já da garrafa, que começava a se esvaziar.






(...)
* veja Quincas Borba, obra de Machado de Assis.

Thursday, June 28, 2007

Sabedoria enlatada faz seu pout-porri



Você diz coisas bonitas compradas em qualquer loja de conveniência, enlatadas e industrializadas, organizadas num caderno em espiral e espera que nessa insipidez haja algo belo e formidável, que talvez, você diz para parecer filosofia, você estampe numa camisa, anote no celular, tatue nas costas, vire seu mantra matinal. Está tudo podre, eu digo. Não adianta, não tem gosto, não tem sabor e nem é seu. Mas, para você, é tão bonito o ato de tomar essa garrafa de pensamentos alheios e se dizer sábio, recontando histórias que eu estou pouco me lixando. Você é colecionador e eu tenho horror a coleções porque, meu caro amigo, elas perdem o sentido assim que são atingidas. Só a caça pelo exemplares especiais e reluzentes é que faz essa patologia de compilar as coisas menos vaga. Vai fazer o quê? Guardar tudo num armário, na estante e olhar para isso como se fosse seu, orgulhoso da ausência de si? Isso é quase roubo. Eu digo: joga fora, vai lá fora e cria algo seu, ainda que de mau gosto. Incendeie tudo o que é barato, universalmente barato. Está tudo tão podre ultimamente, contaminando o que resta de proveitoso nas pessoas, tornando toda criação duvidosa e toda leitura um sufocante teste de qualidade. A gente precisa lutar, amigo, lutar contra o fantasma da praticidade, da pseudo-cultura descartável. Sejamos complicados, sejamos espirais num mar de retas. Pra quê?, você diria com a testa larga franzida, chateado pela crítica. Pra quê se no final tudo se perde e morre pra mim e, afinal, toda criação não passa de uma releitura? Por que simplesmente não ser observador, colecionador, como você diz? E eu responderia, negando com a cabeça e o dedo indicador, bailarino no ar: cara, já disse, fique longe de mim com esses enlatados literários-culturais mofados. Meus escritores de cabeçeira morreram, não estão por aí para brigarem por seus direitos autorais, escreveram pelo mesmo obscuro e incerto motivo ou motivos que eu também escrevo e, numa forma egoísta-heróica, eu escrevo para eles, como se saldasse uma dívida inalienaválel de conhecimento e perspectiva. Vou criar os meus textos com os meus temperos e, se ninguém apreciar, vou comê-los, ávida de mim mesma, auto-antropofágica, porque lá – e eu diria com os olhos marejados, apontando para uma paisagem invisível que se desabrocharia pra mim – até lá, meu amigo, há coisas que eu preciso comer, absorver, transformar. E você ficaria irritado, andaria de um lado para o outro, com as mãos presas, uma na outra, atrás de si, com o óbvio pensamento de coletar na sua memória uma passagem bonita, pra me contradizer e depois, lustroso, se vangloriar. Não vê que a glória não é sua, se é que há glória e não uma dor de quem acaba de parir, uma mãe cega e anestesiada pela felicidade de conceber? Escrever é segredar, desconstruir e construir, constantemente – pode ser doloroso, amigo. Eu desconstruo Caio, Clarice, Chico, Machado... e das pequenas partes deles, eu me remonto. E você diria, apontando agora seu indicador no meu peito: não vê que és também cópia, faz coleção deles? E eu diria sorridente, segurando a ponta do seu dedo parado no ar: sou eles, mas também sou eu, porque sou eu a cola que une tudo, sou a forma e as pinceladas. Dou um exemplo fácil: as cores são fixas, encontrará as mesmas cores em todos os quadros. Mas, Dalí é Dalí e você não o confundiria com Tarsila, muito menos Renoir. E as cores são as mesmas! Todos somos matéria-prima de uma mesma essência e sou, essencialmente, Caios, Clarices, Chicos, Machados e todos os outros que não cito por pressa de me fazer entender. Quem é que pode dizer que no que escrevo não estão todos eles ou se em todos eles, não estou eu também? É espelho-reflexo, amigo. Você não saberia identificar, muito menos com os seus enlatados - descarte-os! E você ficaria mais apressado, acuado, veias saltariam à testa, trincaria as arcadas dentro da boca. E eu já não diria mais nada, porque até sua reação, daí pra frente, seria ready-made. Deixo você se divertir com as suas compilações laicas e inóspitas, dou de ombros, enquanto vou aprendendo e me divertindo com as pedras do meu caminho; caminho esse que só reconheço depois de caminhar.
[créditos da foto: http://www.digitaldrops.com.br/drops/design/ - releitura do quadro The Persistence of Memory (1931), SALVADOR DALÍ]

Monday, June 18, 2007

Na madrugada em que Mercúrio se alinhou com Urano

Urano:
- Você dá a data, eu dou o vinho.
Mercúrio:
- Oh yes! Oh baby come on!
Minutos depois...
Mercúrio:
- Daqui a pouco estarei sobre os seus domínios...
Urano:
- Sempre esteve, não?
(...)
"Uma vez que Virgem se delicia em levar a ordem ao caos e que Aquário se delicia em levar o caos à ordem, estes dois signos solares deveriam representar o desafio final um para o outro.

Os aquarianos insistem no direito de serem individualistas e se recusam a levar os outros ou a si mesmos a sério, encarando a vida com agradável e descuidado alheamento.

Naturalmente, tudo isto fascina o virginiano de mente metódica e inclinado à ordem, o qual não ousaria profetizar ou predizer o futuro (vivem muito ocupados analisando o passado e esmiuçando o presente), que levam a si mesmos e tudo o mais a sério e não encaram coisa alguma com descuidado alheamento.

Um aquariano quase nunca se desculpa por falhas ou excentricidades, ao passo que o virginiano típico, graciosa e sedutoramente, diz "perdão" a cada vez que comete a mais insignificante ofensa contra a tradição ou idéias populares de comportamento.

Os aquarianos são as criaturas mais motivadas pela curiosidade que conhecemos.

O mesmo vale para os virginianos, porém estes em geral se dividem entre a cautela e a curiosidade.

Eles se impacientam, analisam e refletem sobre um assunto cuidadosamente antes de agir, assim se privando da espontaneidade..

um dom que terão de aprender com Aquário, o qual está aprendendo a muito necessária lição de discernimento com Virgem.

A perspicácia e clareza de pensamento virginiano, combinadas à inventividade e gênio de Aquário, poderão ser a exata alquimia mágica de que precisamos, mais a inata gentileza e preocupação pelos outros, características destes dois signos solares. "

Wednesday, June 13, 2007

Ao sabor da correnteza

(créditos da foto ao blog: Mulher de 50 a 60)


As palmas das mãos apoiadas nos respectivos joelhos e os dedos, inquietos, datilografando cartas imaginárias e poesias não declamadas sobre o azul do jeans. E não olhava para os dedos: olhava para os lados, ansiosa; pro relógio branco de ponteiros negros sustentado no teto da rodoviária, impaciente; para as caras sem expressão ambulantes pelo saguão, curiosa. Em meio ao mar de cinzas metálicos visualmente cansativos, eu movimentava apenas cabeça e vez ou outra o braço esquerdo, conferindo as horas, duvidando até mesmo da boa vontade de ambos senhores do tempo. Fitei meus pés semi-nus, numa sandália bege claro e "só ri" alguns segundos devido ao tamanho dos saltos. Somei a minha altura aos quase dez centímetros da plataforma do meu calçado e forcei a memória para lembrar-me da altura dela: “seriam 1,57, 1,55?”. Indignada, percebi que ficaríamos distantes na hora do abraço – e era a hora mais importante, porque todos aqueles meses, que se converteram, teimosos, em anos e em desejos, confabulavam histórias mágicas do poder do círculo magnético dela sobre o meu, quando finalmente fôssemos só um orbital, elíptico, bilobulado e especialmente brilhante, quente e simétrico. Retornei a ambos relógios, pedindo um conselho gratuito, deveria ou não trocar os sapatos? Uma das malas estava cheia deles e, salvo o embaraço de retirá-los em local tão público, nada mais parecia tão adequado – porque eu queria os braços dela ao redor do meu corpo, paralelo aos meus, entregues e apertados. Alguns minutos perdidos, reavaliando meus próprios pés, os dedos, as unhas tão delicadamente cuidadas e pintadas na cor renda... e ver aquele carinho todo traduzido até ali acabou por me convencer de que não haveria de mudar nada: “não vou mudar nada”, eu repetia sorrindo, sem me importar com os rostos sem expressão que transitavam e que jamais entenderiam a ternura do meu momento antes-dela físico.

E era irremediável não pensar nisso: no antes-dela. Desde que ela, magistralmente, entrou na minha vida, algo em mim se tornou menos óbvio, mais encaracolado, dual, bivalente, poderosamente interpretativo. Antes: eu poderia medir, com réguas e dias, a minha existência pacífica. Como se eu acordasse depois de uma noite de pouco sono e tantas perguntas, ela apareceu, luminosa e indescritível, segurando minha mão e recontando as coisas, refazendo minhas perguntas e refletindo as respostas (e insisto no prefixo "re" justamente porque é um começo, "é tudo novo de novo", como ela mesma, certo dia, colocou). Nasceu para mim, então? Caoticamente enumerando: pensava, pensei, pensaria e penso sempre: no poderoso, expansivo, espontâneo e escorpiano existir dela. E eu insistia em teimar, com as pernas inquietas, se ela entenderia; em seguida, balançava a cabeça num movimento de amplitude pequena, livrando-me desse agouro, segredando aos relógios e concluindo “ela sente”. E um vento agressivo e docemente frio abandonou a Afonso Pena, cortou a Praça da Estação, revolvendo flores e folhas para entrar suave na rodoviária e me lembrar de que ainda era inverno. E mais que imediato, eu respondi “seu bobo, nunca é inverno no Rio”.

Verifiquei que alguns minutos ainda me separavam do horário de embarque. Havia decidido ir de ônibus, para dar tempo de ouvir todas as músicas que meticulosamente coloquei no iPod, enquanto ensaiava, como se morasse dentro de uma lata de felicidade contrabandiada dos meus sonhos, os momentos que passaríamos, as risadas que dividiríamos, as pequenas epifanias pintadas de azul e encontradas ao seu tempo, como pequenas conchinhas recolhidas ao longo da praia. O coração acelerava diante da possibilidade dos detalhes, de todos os traços que eu anotaria mentalmente, (a)provando a proximidade que antes era apenas possibilidade. No espaço de tempo que ainda me separava da jornada, puxei uma das malas para próxima de mim; abri um de seus zipers e conferi o sólido geométrico cuidadosamente embalado num papel de presente azul, bem azul. Tomei-o no colo e, com uma das mãos espalmadas sobre sua superfície, alisava-o, com os olhos fixos em seus contornos e o olhar semi-cerrado, por trás das lentes dos óculos que, lentamente, se umedeciam. E eu me lembrava de quando havia surgido a idéia, de ter imprimido a foto, em toda sua essência azul e laranja, chegado próximo de mamãe, pedido carinhosamente, enquanto brincava com seus cabelos loiros e ondulados, tão parecido aos dela. E, na sua áurea tão reluzente e compreensiva, mamãe tomou o desenho em mãos, me ouviu e desenhou, com algumas distorções e outros detalhes, a mesma paisagem, em tons parecidos. Calmo e profundo, o rio foi sendo pincelado, dividindo e misturando azul e laranja em suas águas. E agora, com o quadro já pronto em mãos, a alegria da entrega era estupenda e eu só poderia esperar com os olhos, que os olhos dela, que eu imaginava ligeiros e astutos, entendessem o que de mim ficaria com ela, assim que o recebesse em mãos. E a boca? Bem, a boca saberia se expressar ligeiramente melhor do que os olhos e seriam, por assim dizer, mais contundentes.