(Ainda está inacabado. O texto me pede mais e mais. Como o Bruxo soube fazer tão bem inúmeras vezes e é legado - ou seria feitiço? - dele em mim, "Por onde andará Lily Braun?" me escraviza, me cobra a continuação-satisfação, pois eu sou, além de narradora-voyeurista - prefiro ao simplório observador e sobre isso, escrevo depois -, uma leitora borbaniana* e, como minha cara Bárbara, também estou esperando, olhando pra tela, que é minha porta, com as pontas dos dedos também trêmulos, lábios dela. Estamos esperando o texto que virá me dilatando, catársico, independente, abortivo. Será ele por ele e, maternalmente, morrerei depois, anestesiada e sabe-se-lá se satisfeita.)
(E o leitor ficou desanimado, haja visto dois preâmbulos. Pensou, categórico, segurando a língua e ameaçando fechar o site, que este ser que vos fala é desnecessariamente explicativo, será leitura enfadonha. Se assim for, seja meu convidado à saída. Veja bem, se eu não introduzir certas perguntas e desmascarar a leitura inútil, logo agora, você terminará como Lily Braun, "nunca mais romance". Considere estas poucas linhas a âncora que dará sustentabilidade. Entrarás engatinhando nos terrenos de Bárbara e eu já estou crescida e enraizada lá. Pense, leitor atento, com seus dourados botões, por que será que toda boa história termina com um ponto de interrogação, visível ou não?)
Enquanto apertava com uma das mãos o gargalo da garrafa verde-escura de vinho tinto, levava, entre os dedos da outra mão, a taça arredondada ainda marcada com o batom que acabara de passar: um vermelho intenso, vulgar e barato, marcado na borda, sombra dos lábios trêmulos; o desenho avermelhado não se deixava confundir com o roxo do vinho, que sujava o interior da taça, indicando que a bebiba ficara ali tempo suficiente para impregnar o vidro. Bárbara encheu mais uma vez a taça, até um quarto do recipiente e tomou-o um gole só, deixando escorrer uma gota atrevida pelo canto da boca. Segurou o líquido na boca durante algum tempo, o que deixava as bochechas inchadas e, aos poucos, deixava que fios quentes da bebida escorressem garganta abaixo. Quando se deu por terminada, apoiou garrafa e a taça em cima da mesa de madeira, bem ali no canto esquerdo da sala, justaposta à porta que dava na cozinha. Olhou-as - sem as ver - por um breve segundo, para em seguida fechar fortemente os olhos e perceber que os pés se despediam do assoalho e o corpo ameaçava tombar; balançou a cabeça, desorganizando algumas mexas do cabelo castanho claro, sem desajeitar as idéias que, poucas, ainda tinham algum lugar. Um olhar despistado contra o relógio de pulso, numa batalha silenciosa de quem-vence-quem pelo cansaço, pela silenciosa espera, pela inafiançável esperança, pela infinitude milimetrada. Já se passaram vinte e três minutos e teimosos segundos do horário previsto para a chegada e, inevitavelmente, os olhos de Bárbara voltam inquietos para a porta. Será que viria? Tornava a encher outra taça até um quarto do conteúdo e tomava o vinho num gole único, sedento e descompassado, que levantava seu colo ao ritmo dos goles ferozes. O afastar dos lábios agora molhados da taça, imprimiu, em outro lado da borda, o mesmo desenho de tom vermelho, entretanto mais claro; os olhos que, perdidos, perambulavam entre garrafa, porta, relógio, garrafa, porta. Os ouvidos estavam especialmente sensíveis a qualquer ruído externo e acabavam por criar ondulações alegria-raiva, quando alguma porta de carro se fechava do lado de lá da porta da frente, e ela se retocava, felina, olhando para o espelho que, distraído, olhava também para ela.
Ameaçou levar os dedos à boca e roer-lhes as unhas, mas ao aproximá-las do rosto e ainda com uma dificuldade visual causada pelo álcool, viu como estavam bem-feitas e delicadas: os contornos visualmente uniformes, o brilho do esmalte cintilante contra a pouca iluminação da sala. Lembrou-se de que levara tempo até mantê-las de um tamanho adequado, posto que passara tempo demais roendo-as, ao ponto de se ferir e acabava por adicionar um pouco de diversão ao pouco de sangue que saia e ardia. Silenciosa até para os pensamentos – como se o desejo assumido despertasse um azar e quebrasse qualquer possibilidade de felicidade futura, ela sonhava pouco e breve, anestesiada, acolhendo tenra, o que de bom podia e se permitia ter nos suspiros dos seus devaneios–, torcia para que suas mãos, especialmente as unhas, fossem notadas. Acreditava num carinho recôndito daquele que lhe prestasse essa atenção e, se alguém, então, assim o fizesse, poderia visualizar a áurea feminina de Bárbara cruzar as pernas primeiro e então os braços sobre o peito, esboçar um sorriso senhor da sedução dissimulada, no canto do lábio, plenamente satisfeito; abandonaria-o apenas para balbuciar falácias para si mesma, com a boca entreaberta, na qual podia se ver a língua rósea inquieta e viscosa.
Ainda de pé e ligeiramente desequilibrada, apoiou-se na mesa de madeira, forçando o corpo sobre ela e ela, a mesa, forçava o seu sobre a parede e assim, mulher, mesa, parede tornavam-se um só ser, estático. Fitava as pontas dos dedos longos e alvos como se ali residisse todo seu empenho em mudar. Riu-se, levemente histérica, provocando algum abalado no equilíbrio da mesa, enquanto olhava para as mãos. Um outro gole de vinho, agora já da garrafa, que começava a se esvaziar.
(...)
* veja Quincas Borba, obra de Machado de Assis.