Sunday, December 24, 2006

Papo sério - parte I

- Oi Bruna.
- Ei Raquel.
- Você? Aqui?
- É... eu aqui.
- Gente, que mundo...
-... pequeno, né? Eu sei... eu sei... você aqui!
- ... é.
- Tanto tempo não nos falamos. Desde a última vez...
- Na academia, certo? Pois é, faz tempos.
- É, faz sim, faz sim. Saiu de lá faz muito tempo?
- Algum... estudando mesmo. E você, continua lá?
- Não, já saí também. Nossa! Tem mesmo muito tempo que não nos vemos. Acredita que lembrei muito de você depois que saiu?
- É? Eu duvido...
- É... verdade. Morando aqui em BH?
- Ahã.
- República?
- Sozinha, na maior parte do tempo. E você?
- Ainda no mesmo lugar de sempre.(...) Quem diria encontrar você aqui?! Não acredito...
- Eu quem digo! Você! Por aqui...
- Não sabia que você gostava de...
-... pois é. Gosto. Também não imaginava você...
- É.
- Que coisa!(...) Veio sozinha?
- Com um amigo.
- Homem?
- ... ou quase isso.
-(risos)
- E você?
- Uma turminha...
- Hmmm... turminha?
- É... alguns amigos.
- Algumas amigas?
-... também.
- Algumas com um prefixo de “ex”?
- Não. Ainda não... por quê? Você tem?
- ... quem sabe?
- (...) Ainda está namorando o...?
- Não, já terminei. E você?
- Terminei também. Faz algum tempo... logo depois eu descobri “isso”.
- Ah... (risos), aconteceu comigo assim também.
- Sério?
- Ahã.
- Já veio muito aqui?
- Algumas vezes, nada demais. Você?
- Primeira, já fui naquela outra boate, a Jô, mas prefiro essa aqui...
- É, também prefiro a Gis. Para quem gosta dessa “balada” mais feminina, é perfeito.
- (sorriso) Mesmo?
- (recíproca) É... é sim.
- Fala como se tivesse bastante experiência.
- Bastante? Não. Alguma. Você tem?
- Uma só.
- Sério? Faz muito tempo?
-... não.
- Ok. (...)
- E hoje? Sempre lhe vi acompanhada, sempre com alguém. Quem é o sortudo... melhor dito, ou seria sortuda de hoje?
- (sorriso) Esse copo de vodka. Aceita?
- Não, obrigada. Sozinha nessa balada abarrotada de gente?
- Às vezes é preciso estar suficientemente só para não fazer besteira.
- Uau, que momento poético (risos).
- Desculpa, vai ver é a vodka...
- Não... gostei, gostei. Também estou sozinha...
- Por opção.
- Por falta de opção.
- Você? (sorriso) Falta de opção? Corta essa...
- (sorriso) Por que disse "eu"? Insinua...
-... sem insinuações. Só acho que você não combina com o tipo de perfil que passa por falta de qualquer coisa.
- Mas, passo. Adianta ficar com qualquer um pra terminar a noite sem saber o nome?
- Verdade... o final, a noite sempre termina, não é? A diferença é se a gente termina junto com ela.
- É. (...) Está difícil lhe ouvir, quer vir mais pra cá, assim a gente foge do som. (...) Aqui.
- E como andam as coisas por lá?
- Bem... pensei em você depois que saiu da academia. Não deixou número, não entrou mais no ICQ...
- É... é bom hibernar um pouco...
- Um pouco? Acho que até demais. (...) Lembra das horas que passávamos na esteira conversando? Lembra?
- Claro, né? Como eu ia esquecer.
- Bruna...
-... oi?
- Você ainda tem o mesmo olhar.
- Mesmo olhar?
- É. Mas, antes parecia menina sapeca.
- (risos) Sapeca?
- É. Agora... (sorriso), não sei... mulher... me deixaria dizer sensual sem soar atrevida?
- (sorriso) Claro. (...) Posso dizer outra coisa, sem soar atrevida?
- (sorriso)
-... você continua com o mesmo sorriso.
-... desde quando repara no sorriso dos outros?
- No dos outros, nunca. No seu... (sorriso), já é outra história...
- Ahn... (sorriso). Que que tem demais meu sorriso?
- Chama a minha atenção. Sempre chamou. Quando você ficava lá horas na bicicleta, conversando com os instrutores... fazia caras e bocas.
- (sorriso)... prestava muita atenção...
- Nananinanão. Já disse: sua boca é a culpada.
- Está bom.
- Sua amiga está lhe chamando, olha lá...
(...)
- Uai, achei que fosse embora...
- Disse pra ela que queria ficar... eles já estavam indo embora, mas expliquei que tinha um bom motivo pra ficar...
- (sorriso) Você vai dormir aqui em BH essa noite?
- É... na casa de um dos meninos. Lá no Santa Efigênia...
-... hmmmm. Não é longe de onde moro. Se quiser, diga lá que você fica e, depois de um café, eu te levo em casa.
- (sorriso)... mas já me convidou pro café?
- (sorriso)...

Sunday, December 10, 2006

O final que eu prometi e o sem fim de mim...

" Elas se amavam e achavam que o mal
Tava no fundo do rio
Não se tocavam e achavam normal
Deixar seus corpos com frio
Mas exalavam o cheiro fatal
De todo corpo vazio
E era um amor assim medieval
Claro, num porão sombrio " (Oswaldo Montenegro)

Rodei a chave dentro da fechadura da porta, ainda um pouco tonta com as doses de whiskie, lutando contra o peso das pálpebras, o arder dos olhos das lágrimas recentes. Quando fiz menção de destrancá-la, percebi que já estava livre do ferrolho e apenas torçi a maçaneta. O clarão da luz do meu apartamento, contrastante com a semi-escuridão do corredor, cegou-me por alguns minutos e quando recobrei a visão, deparei-me com a silhueta de Letícia atirada num dos sofás com uma taça vazia nas mãos. Antes que eu a interpelasse com qualquer pergunta, ela se lançou:

- O vigia me deixou entrar - disse sem desviar o olhar da taça vazia - incrível o que um decote faz com os homens - e sorriu, consertando a cava da blusa que vestia.

- É... realmente.

Sem entender o propósito da visita noturna de Letícia e ainda sentindo latentes o calor de Ana e de Amanda no meu corpo, caminhei em direção ao sofá oposto aquele onde ela se sentava. Desamarrei as sandálias, tirei-as, alonguei os dedos enquando Letícia não despregava o olhar espremido da taça, que parecia enfeitiçá-la e, sabe-se lá, segredar-lhes conselhos. Franziu as sobrancelhas quando começou:

- Você apareceu na festa.

- Eu tinha que ir - um sorriso cínico nos lábios.

- É... - ela sorriu - tinha. - silêncio, inspiração profunda - gostou?

- Nada demais, nada de menos.

Ela sorriu novamente. Entretanto, desviou o olhar e fixou-os em mim. Largou a taça de lado, pegou a bolsa que estava encostada no braço do sofá, retirou um maço de Carlton e acendeu um cigarro e continuou:

- Quantas já dormiram aqui?

- Que pergunta sem...

- Quantas, eu perguntei.

- Não sei - eu franzi a testa, aproximando sobrancelhas - pra quê isso?

- Não te interessa.

- Me interessa a partir do momento em que você invade meu apartamento em plena madrugada...

- Como se você não tivesse feito isso comigo...

- Quando? - eu ironizei.

- ... quando invadiu a minha vida, meu corpo...

- Que papo é esse, Letícia? Você está bêbada?

- E se tivesse? Importa menos?

- Não, mas é o que parece...

- Não importa, Lisa... fica calada enquanto ainda não falou merda.

Por raiva ou simplesmente cansaço, atirei-me ao sofá. Cruzei as mãos atrás da cabeça e relaxei o abdômen; fitei o teto por longos minutos, dando poucos olhares de soslaio para Letícia, sentada ao meu lado direito no sofá do outro lado da sala, entretida com a fumaça de cigarro.

Subitamente, ela se levantou. Caminhou a passos calculados em minha direção. Contra o piso e contra o ar, ela andou aqueles metros pausadamente, como se silabasse uma sentença, forçando o salto de seu sapato contra o chão: um anúncio de chegada sonoramente sinalizado. Sentou-se sobre o meu ventre, pressionando o corpo contra o meu; inclinou-se sobre mim e me puxou ao encontro de seu corpo. Letícia encostou os lábios vermelhos nos meus. Por simples reflexo, eu acabava me envolvendo no beijo, invadindo a boca dela com a minha língua e deixando que ela invadisse também a minha boca, numa mistura amarga de diferentes gostos. Ela imprimiu um ritmo ao movimento das ancas e eu percorri o contorno das coxas dela com a palma da minha mão.

E sem que eu esperasse, ela me empurrou de volta ao sofá e desenvolveu um raivoso tapa na minha face. Acelerado, raivoso, pesado, sofrido... o tapa me deslocou, me desconcertou, ardeu, umedeceu os olhos. Arregalei os olhos, buscando o olhar dela e um bravio frio percorreu-me o ventre quando percebi que o olhar dela permanecia imóvel e estático, tão análogo à maneira como olhava a taça, fria e vazia.

Letícia se levantou, pegou a bolsa, saiu apressada do apartamento e, antes de fechar a porta atrás de si, deixou um papel sobre a mesa do centro. O barulho da porta é forte e ameaçou me alavancar daquela sensação de torpor e inconsciência do tapa. Cogitei buscar-lhe à força, perguntar-lhe retóricas idiotas e apenas fiquei ali - com a pretensão vermelha ardida no rosto. Alguns minutos mais tarde, e eu adormeçi encolhida no sofá preto, sem demonstrar qualquer pretenção de levantar e ler o papel.

No dia seguinte, lembro-me que levantei com uma terrível enxaqueca, o crânio que parecia fervilhar e latejava dolorido. No caminho para o banheiro, pego o papel que Letícia havia deixado sobre a mesa: uma foto. Alguém na festa havia tirado uma foto no momento genial; eu, com os olhos no copo; Roberta, ao meu lado, com a boca semi-aberta perto ao meu ouvido; Ana com os olhos brilhantes e oblíquos apontados para mim; Letícia, mordendo os lábios inferiores, com o olhar desmedido e guloso sobre mim; Amanda, com uma das mãos nos cabelos, com os olhos marejados e tímidos, que pareciam esconder-se de todos, mas revelavam a pupila teimosa que se lançava sobre mim.

Parei algum tempo com aquela fotografia entre os dedos e, naquele instante incerto e dolorido, uma história inteira de relacionamentos parecia desvendada e a maldição que caia sobre mim finalmente libertada. Meus olhos não eram de ninguém, nem mesmo de Ana, que parecia ser a que mais os marecia - ou era confortável, para mim, pensar que era ela quem os merecia, já que dificilmente ela iria aceitá-los de volta. Meu olhar, obscuro e melancólico, pairava sob meu próprio copo, sobre aquele amarelado líquido; amarelo e óbvio líquido, volátil e amargo, cuja forma depende unicamente do recipiente.

Joguei o papel sobre a mesa, de um jeito desajeitado. Caminhei pra banho em passos pesados e vagarosos, com o corpo trôpego e desamparado. Acendi a luz do banheiro e quando me foi possível enxergar no espelho, a imagem parecia distante da minha. Imagem fugidia e inverossímel, que conta uma história errada do meu fim. Um fim que é tão só meu que também termina só e absoluto, relembrando que não existe nada além da finitude e do inalcançável. Nada, além dessa certeza de que, eventualmente, a noite também tem seu fim, e as cabeças se vão entorpecidas, os corpos sedentos, os corações impermeabilizados, as caras e as almas marcadas de um vermelho sangrento e escuro. O grand finale que fecha as cortinas antes que alguém enxergue as lágrimas dos atores.