Ainda com um sorriso vitorioso nos lábios, traguei uma outra dose do whiskie. Meus olhos encheram-se de lágrimas logo que o último gole percorreu garganta abaixo e através do fundo do copo de vidro, eu assisti aos olhos das quatros mulheres me fitarem inadvertidamente. Coloquei o copo de volta à mesa, sorri calma e quando já dava as costas para voltar pra qualquer lugar longe:
- Fica aí, Lisa! - pigarrou Ana - não faça essa desfeita à velhas amigas.
À medida que a voz foi se traduzindo em sentimento dentro de mim, um choque iniciou-se no ventre e arrepiou-me pêlos em diversas regiões. Ana havia se pronunciado pela primeira vez diretamente a mim. Olhei-a nos olhos sem disfarçar o espanto camuflado em surpresa e disse num suspiro tedioso e quase inaudível "velhas amigas a pinóia". Pelo incerteiro e delator comentário que elas não ouviram, apenas afirmei positivamente com a cabeça. Letícia, ainda tão brilhante quando à primeira vista, parecia divertir-se com a cena, esquecendo-se da presença de Ana colada no seu corpo, sob a protetora defesa dos seus braços; bebericava freqüentemente o copo de cerveja para ter um álibi de me olhar nos olhos. Ana, irremediavelmente deslocada, não parava o olhar em lugar algum, salvo raras vezes em que se perdia em alguns pontos luminosos que enfeitavam o ambiente. Amanda, agora já atirada ao colo de Roberta, brincava com os cabelos curtos e cacheados da minha amiga butch, que ainda atônita, pedia-me desculpas incoerentes com o olhar.
Ali parada, eu era caça de 4 caçadoras. Umas devorando, outras espreitando, outras apenas esperando a hora certa. Busquei por um cigarro no bolso, mas ao encontrar os olhos de Ana sobre os meus gestos, acabei por desistir. Arrisquei:
- Há quanto tempo estão juntas?
- Há, não faz muitos... - Ana começa.
- Longos meses - Letícia sorriu segurando o queixo de Ana e virando-o para si - não é, Aninha?
Ana mostrou os dentes e voltou os olhares novamente à atmosfera irradiante ao redor. Letícia encarou-me, perguntou se não iria me sentar. Amanda ofereceu o lugar que estava sentada e acabei por recusar todos. Para minha sorte, eis que aparece, milagrosamente, uma mulher que eu já conhecia há algum tempo, caso antigo e velado. Caminhou em minha direção trepidando os seios fartos aprisionados por debaixo de um decote em V abusivo e indiscreto.
- Lisaaaaaaaa... - e me envolveu num abraço apertado no qual seus seios pareciam me sufocar.
Tomei alguns minutos de conversa com a sensual mulher: relembrei de onde a conhecia, do que havíamos feitos juntas e cheguei a ganhar o novo número de telefone celular da donzela, não sem antes fornecer o meu por livre e espontânea pressão. Cordialmente, armazei o número no celular com o lembrete "não atender".
Quando voltei o olhar às meninas da mesa, todas elas pareciam ligeiramente enfurecida, a exceção de Roberta que a estava hora já desprendera-se da timidez inicial e aventurava-se a também brincar com cabelos de Amanda.
A noite transcorreu calmamente. Afastei-me um pouco dos casaizinhos, para evitar qualquer desentendimento, visto a visível pertubação que eu causara. Momentos antes do final da noite, eu acabo encontrando com Ana dentro do banheiro.
- Não sabia que você viria - ela inicia.
- Nem eu - e eu a olho pelo reflexo no espelho.
Ana dá uma risadinha de lado, lavando-as mãos. Como eu deveria passar muito próxima a ela para entrar na cabine do banheiro, acabei por roçar meu corpo contra o corpo dela e, ao olhar no espelho, eu a vi fechar os olhos e morder levemente os lábios inferiores. Atenta, eu reduzi a velocidade, atritando meu corpo contra o dela mais vigorosamente, até que ela cedeu: empurrou-me cabine a dentro, colocou-me sentada e sentou-se sobre mim, arranhando minhas costas, puxando enloquecida os meus cabelos, desprendendo todo o peso de seu corpo sobre meu ventre. Beijou, mordeu, lambou, mordiscou, chupou, beijou e beijou meus lábios. A cena e as sensações foram rápidas e logo que Ana recobrou os sentidos, acabou por sair de mim, empurrando-me de encontro a parede da cabine: empurrou a porta e ainda pude assistir a uma lágrima ensaiando arrependimento.
Sob o efeito do álcool e do som alto, eu fiquei alguns minutos sentada ali, onde Ana havia me deixado. Ainda anestesiada pela presença dela, fiz menção de levantar e correr ao encontro dela, mas a tontura foi maior e jogou-me de volta ao assento. Tão logo consegui tomar rumo para fora do banheiro feminino, pedi uma garrafa d'água e a tomei num gole só. Caminhei em direção à mesa e para meu discreto espanto, Ana não chorava, não protagonizava uma lágrima sequer: o mesmo sorriso oblíquo e cigano, quase capitolino. Estou indo embora, eu disse. Amanda deu um salto para fora do colo de Roberta, que a essa hora já não dava notícia de si, e me disse que precisava de carona e se eu não a podia levar. Entreolhei Ana, Letícia e Roberta, que embora parecessem alheias as cenas - disso eu sabia - estavam tão alertas como eu. Acabei por optar a dar-lhe a carona, sensibilizada pela beleza e pelos lábios de Amanda, confessado.
Entramos no carro em silêncio. Nem uma palavra trocada em todo percurso, apenas o rádio ligado numa emissora dessas que tocam músicas antigas. Amanda batia os pés sobre o assoalho do carro, sonorizava estalos de pulga com as pontas das unhas. Estacionei o carro à frente de seu prédio, mas ela me pediu que entrasse com o carro, pois não era aconselhável aos moradores entrarem tão desprotegidos. Sem qualquer pudor ou previsão, adentrei no estacionamento, parei à frente do elevador e antes que eu destravasse as portas do carro, Amanda pulou sobre mim, levantando-me o vestido, beijando-me o pescoço, num assédio sedento.
- Amanda! Mas você está com...
Entre fôlegos que ela dava e entre minhas tentativas de escapatória, ela conseguiu alcançar o meio das minhas pernas e com o leve toque de seus dedos pressionou meu corpo no ponto certo; tão certo que entreguei à vontade e ela acabou por invadir-me por inteira, gemendo junto comigo, segredando indecências no pé do ouvido. Instantâneo. Sem falar nada, ela se recompôs. Parecia tristemente satisfeita e naquele momento senti meu corpo à parte de mim, vendido e fútil. Ela fechou a porta do carro atrás de si e embarcou no primeiro elevador desocupado. Deixou-me ali, exposta ao sentimento auto-punitivo de ridículo, com a infinidade de possibilidades do silêncio e do abandono dela.
De volta à casa, ainda no estacionamento do meu prédio, liguei o som numa rádio oportunamente de blues: longas e pesarosas lágrimas venderam o peso dos copos de whiskie. Eu me sentia suja e usada e ao mesmo tempo dona do mundo. Ana e Amanda me tiveram e não souberam possuir - e àquela altura, eu já não saberia diferenciar se era eu quem não sabia pertencer ou elas que não saberiam cuidar. E talvez o mais triste fosse que nem a mim elas podiam pertencer: essa coisa fugidia que eu personifico. Enquanto os faróis passavam ofuscantes por mim, as imagens da noite, dos beijos, das roupas, das bocas, de Ana, de Ana, de Amanda e de Ana novamente se misturavam e se agrediam dentro de mim.
(...)
Saturday, November 25, 2006
Saturday, November 18, 2006
When you look... (continuação)
(Demorou, mas chegou. Curto e breve, é verdade. É essa maldita falta de tempo. Prometo a continuação em breve. Para os que começam a leitura agora, caso queiram se contextualizar, o post "When you look around do you wonder..." é o início dessa história melo-dramática que eu insisto em recontar. Aos que já sabem, bom apetite.)
Os dois cubos de gelo dentro do copo de whisky insistiam em tilintar vigorosamente entre minhas mãos, embora eu me esforçasse para mantê-los menos barulhentos. Roberta lançou um sorriso zombeteiro sobre mim, dando duas palmadinhas no meu ombro esquerdo.
- Gostou da surpresa da noite, amiga? – Roberta me encarou
- Que surpresa filha da...
- Epa! Calma, mocinha. Ladies não falam palavrão! – e sorriu novamente, tomando-me uma das mãos e caminhando em direção à mesa – elas não mordem e, mesmo que mordessem, eu já sei que você gosta disso - deu ao "disso" uma entonação irônica, o que me fez olhá-la ferozmente em reprovação à brincadeira.
Minhas pernas resistiam ao movimento, mas algo tão mais interno e irresistível também me ajudou a aproximar das três figuras femininas. Amanda iniciou:
- Achei que você não vinha. Deixei recado na sua secretária eletrônica, mas você não respondeu...
- Pra variar – Letícia murmurou.
Olhei para Letícia, sentada bem próxima a Ana, que parecia tão assustada quanto eu. Armadilha ou não de sua parte, Letícia estava incrivelmente fascinante naquela noite: os lábios delineados, um batom suave acompanhado de um brilho chamativo que dava a sua boca um tom intocável e amplamente desejável, os olhos atentos e fixos, gulosos olhos, profundos e profanos. Ana, ao seu lado, ofuscava a minha memória, constrastando com a imagem que eu mantinha dela, da última noite em que ela inva diu meu corpo e meu apartamento; fechada num terninho preto e branco, não se moveu muito, mas percorreu sabe-se lá quantas vezes o meu olhar, os meus gestos, fitou o copo de whiskie nas minhas mãos e sempre que tocada por Letícia, eu quase podia sentir-lhe uma certa ojeriza.
- Sabia que, se fosse pra uma festa, você viria mesmo. – Letícia disse e se voltou para Ana, abraçando-lhe a cintura.
Fiquei algum tempo imóvel à frente delas, transpirando e conjeturando milhares de saídas estratégicas. Olhei para os meus sapatos, para meus joelhos nus, para o meu decote e me senti completamente exposta. Amanda arrastou a cadeira para trás e caminhou em minha direção. Pensei que fosse me abraçar, dar-me os cordiais três beijinhos, afinal já fazia algum bom tempo desde o nosso último encontro. Quando se aproximou o suficiente de mim, deu-me a volta e lançou-se aos braços de Roberta que estava imediatamente atrás de mim, que permaneceu estática, olhando nos meus olhos com os mesmos olhos piedosos de uma criança travessa recém-saída de uma mau-criação.
- Lisa...
Eu tentei não demonstrar a surpresa e levantei o copo, dando minhas reverências à cena. Amanda beijou furiosamente (e é esse o advérbio que descreve a cena: algo furioso) a boca de Roberta e quando finalmente se despregaram, uma mancha vermelha de batom corou queijo e lábios de Roberta, que com as bochechas rosadas – de álcool e de vergonha -, nem fez tanta questão de limpar. Ainda abraçadas, Roberta insistiu:
- Lisa, aconteceu de...
- Relaxa, Roberta. – eu sorri e nessa hora, um peso saiu dos meus ombros – só posso desejar que dê certo.
Os olhos de Amanda se encontraram com os meus e, caso ela estivesse jogando, a partida eu havia vencido. Tática ou não, meu sorriso e a minha tranqüilidade na fala atingiram em cheio o alvo e tão logo ferida, Amanda arregalou discretamente os olhos, enquanto desafrouxava a força com que havia abraçado Roberta. Tomei um gole no whisky, agora nem tão amargo.
Os dois cubos de gelo dentro do copo de whisky insistiam em tilintar vigorosamente entre minhas mãos, embora eu me esforçasse para mantê-los menos barulhentos. Roberta lançou um sorriso zombeteiro sobre mim, dando duas palmadinhas no meu ombro esquerdo.
- Gostou da surpresa da noite, amiga? – Roberta me encarou
- Que surpresa filha da...
- Epa! Calma, mocinha. Ladies não falam palavrão! – e sorriu novamente, tomando-me uma das mãos e caminhando em direção à mesa – elas não mordem e, mesmo que mordessem, eu já sei que você gosta disso - deu ao "disso" uma entonação irônica, o que me fez olhá-la ferozmente em reprovação à brincadeira.
Minhas pernas resistiam ao movimento, mas algo tão mais interno e irresistível também me ajudou a aproximar das três figuras femininas. Amanda iniciou:
- Achei que você não vinha. Deixei recado na sua secretária eletrônica, mas você não respondeu...
- Pra variar – Letícia murmurou.
Olhei para Letícia, sentada bem próxima a Ana, que parecia tão assustada quanto eu. Armadilha ou não de sua parte, Letícia estava incrivelmente fascinante naquela noite: os lábios delineados, um batom suave acompanhado de um brilho chamativo que dava a sua boca um tom intocável e amplamente desejável, os olhos atentos e fixos, gulosos olhos, profundos e profanos. Ana, ao seu lado, ofuscava a minha memória, constrastando com a imagem que eu mantinha dela, da última noite em que ela inva diu meu corpo e meu apartamento; fechada num terninho preto e branco, não se moveu muito, mas percorreu sabe-se lá quantas vezes o meu olhar, os meus gestos, fitou o copo de whiskie nas minhas mãos e sempre que tocada por Letícia, eu quase podia sentir-lhe uma certa ojeriza.
- Sabia que, se fosse pra uma festa, você viria mesmo. – Letícia disse e se voltou para Ana, abraçando-lhe a cintura.
Fiquei algum tempo imóvel à frente delas, transpirando e conjeturando milhares de saídas estratégicas. Olhei para os meus sapatos, para meus joelhos nus, para o meu decote e me senti completamente exposta. Amanda arrastou a cadeira para trás e caminhou em minha direção. Pensei que fosse me abraçar, dar-me os cordiais três beijinhos, afinal já fazia algum bom tempo desde o nosso último encontro. Quando se aproximou o suficiente de mim, deu-me a volta e lançou-se aos braços de Roberta que estava imediatamente atrás de mim, que permaneceu estática, olhando nos meus olhos com os mesmos olhos piedosos de uma criança travessa recém-saída de uma mau-criação.
- Lisa...
Eu tentei não demonstrar a surpresa e levantei o copo, dando minhas reverências à cena. Amanda beijou furiosamente (e é esse o advérbio que descreve a cena: algo furioso) a boca de Roberta e quando finalmente se despregaram, uma mancha vermelha de batom corou queijo e lábios de Roberta, que com as bochechas rosadas – de álcool e de vergonha -, nem fez tanta questão de limpar. Ainda abraçadas, Roberta insistiu:
- Lisa, aconteceu de...
- Relaxa, Roberta. – eu sorri e nessa hora, um peso saiu dos meus ombros – só posso desejar que dê certo.
Os olhos de Amanda se encontraram com os meus e, caso ela estivesse jogando, a partida eu havia vencido. Tática ou não, meu sorriso e a minha tranqüilidade na fala atingiram em cheio o alvo e tão logo ferida, Amanda arregalou discretamente os olhos, enquanto desafrouxava a força com que havia abraçado Roberta. Tomei um gole no whisky, agora nem tão amargo.
Sunday, November 12, 2006
Gone for a while...
Peço desculpa pela segunda interrupção da história, mas prometo a continuação - detalhista - do que aconteceu.
O Sem Blues voltará brevemente a sua aciduidade blogueira.
Au revoir
O Sem Blues voltará brevemente a sua aciduidade blogueira.
Au revoir
Saturday, November 04, 2006
O bater de asas de um Anjo Caído
"Por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado a apenas consumir pessoas como se consomem cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe mas foi só mais um engano? E quantos ainda restam na palma da minha mão? Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com essa fome na boca." ( Anotações sobre um amor urbano - Caio Fernando Abreu)
Não quero lamentar suas lágrimas. Não quero olhar pra trás e ter a certeza de que existe um quê de nós em todas as fotos, em todos os cigarros, em todas as taças, nos seus beijos, nas minhas fugas. Eu vou abortar a nossa felicidade, que é tão mais sua do que minha. Vai doer e serão águas passadas... será só vento e poeira. Ainda preciso dos meus erros, ainda preciso das não-lágrimas.
O episódio que iniciei no post anterior continua, em breve.
Não quero lamentar suas lágrimas. Não quero olhar pra trás e ter a certeza de que existe um quê de nós em todas as fotos, em todos os cigarros, em todas as taças, nos seus beijos, nas minhas fugas. Eu vou abortar a nossa felicidade, que é tão mais sua do que minha. Vai doer e serão águas passadas... será só vento e poeira. Ainda preciso dos meus erros, ainda preciso das não-lágrimas.
O episódio que iniciei no post anterior continua, em breve.
Subscribe to:
Posts (Atom)