O celular tocou irritante dentro da bolsa. Ainda com uma das mãos no volante, procurei-a no banco de trás, alongando e esticando meu braço até finalmente alcançá-la. Peguei o celular, abri o flip e conferi o nome Letícia piscando ritmado no visor do telefone. Como havia um semáforo a poucos metros de distância, deixei o celular no banco de passageiro, enquanto retomava a direção do carro. Assim que parei o carro, ela já havia desistido da ligação. Olhei para os lados, para os carros ao meu redor... tomei-o em minhas mãos de novo e disquei os 8 números, no maior dos pesares:
- Oi.
- Ei – e, sem dar espaço para a resposta dela, completei – não pude atender seu telefonema. Estava no meio do trânsito.
- Ah – com um tom de alívio – pensei que não fosse me atender, como geralmente faz...
E, antes de adentrar este meu capítulo, que eu desvende Letícia. Já lhes apresentei Amanda em outro momento e, informo-lhes que ela continua circulando pela minha vida ou, como ela mesma disse, continua tentando encontrar a saída desse labirinto em forma de mulher que eu personifico.
II.
(Anexo que explica a existência de Letícia) Letícia, alguns anos mais nova que eu, cabelos dourados, longos e excessivamente lisos; dona de gestos meticulosos, mãos espertas e rápidas, fortuitas e quase agressivas, unhas sempre bem feitas, quase sempre pintadas de preto. Eu a conheci um dia, por acaso, numa festa que, de última hora resolvi ir, a pedidos insistentes de uma amiga minha, Roberta. Como havia pouco tempo desde o meu rompimento com Ana, decidi que era o melhor a se fazer, afinal, o que é que uma taça de Martini e um maço de Gudang não fazem? Algum tempo em meio ao jogo de luz, às vozes adocicadas de algumas mulheres, aos comentários masculinizados de Rorô, que a esta hora já havia beijado tantas e dado o telefone errado a muitas, comecei uma conversa amigável com Letícia, que ali também por acaso estava. Alguns tragos no cigarro e Letícia não desviava mais o olhar de mim, percorrendo com os olhos, indiscretamente, meu decote. Eu calculava cada palavra, o tom da minha voz, os gestos, o jeito de mexer no meu cabelo, de brincar com o isqueiro, de jogar a fumaça no ar; aproveitei os momentos em que som estava bem mais alto e inclinei meu rosto para perto dela, para que sentisse meu hálito no seu pescoço, meu perfume... poucos minutos, Letícia entregava suas cartas para mim, sem sonhar com o blefe que eu articulava. A noite caminhou, taças se esvaziaram, cigarros queimaram, juízos foram perdidos e quando a madrugada assinalou o dia que entrava, acordei sobressaltada embrulhada nos lençóis brancos do apartamento de Letícia. A cabeça rodou, pesou, latejou e antes que o corpo semi-nu de Letícia pudesse despertar, vesti minhas roupas e acelerei para fora daquele lugar. Cheguei ao meu apartamento com o Sol apontando no horizonte e adormeci conferindo os 15 recados que Rorô havia deixado na minha secretária eletrônica.
III.
Ainda com Letícia no telefone:
- Pára com a bobagem, Letícia...
- É, bobagem, não é? Deve ser, Lisa, deve ser... – deixou escapar um pequeno tom de ironia, mas sem perder o ritmo, recomeçou - você vai a festa da Roberta hoje?, queria conversar com...
Eu interrompi:
- Não sei.
- Porquê?
- Não estou bem... a Amanda deve...
- Nem começa com esse assunto, Ana. Você e a Amanda não são nada...
- Nem eu e você.
(Às caras leitoras, agora lhes permito o direito de me odiarem e é esse o propósito do atual post: não lhes ser agradável. Como iniciei esse texto, minha melhor definição continua sendo esse labirinto de Amanda: uma espécie de laboratório virtual de relacionamentos instantâneos. Já chamaram isso de sedução e acho infantil acreditar nessa minha sensualidade. É mais uma necessidade de auto-afirmação, de violentamente brincar com os sentimentos alheios à procura de efeitos colaterais em outrem que indique que eu valho algo, que eu desperto alguma coisa. Eu jogo pra ganhar, sem jamais saber o que está em jogo. Letícia é vítima, Amanda também, eu encabeço a lista. Ana é diferente porque ela sabe das minhas cartas, ele entende o meu jogo, ela dispensa o meu blefe. Quando no começo ela seria só mais uma aventura, ele me colocou frente ao espelho, meu feitiço contra mim mesma: ele me olhou nos olhos, compreendeu meu blefe por inteiro e delicadamente retirou essa máscara dos meus olhos, me vendo despida desse tabuleiro emocional. Ana foi o lance de dados do destino para desbaratar essa minha trama. Ana – e até então só ela – entendeu que eu necessito de não precisar de nada, de não estar intimamente ligada a ninguém e talvez seja por isso que, agora, Ana seja a minha ligação com o que eu, inadvertidamente, chamo de felicidade.)
O silêncio dos segundos seguintes pareceram horas. Letícia deu um riso raivoso do outro lado da linha como se eu a pudesse enxergar, fechando os olhos, apertando as pálpebras e vociferando qualquer xingamento.
- Lisa, diga que você vai e eu não lhe amolo mais – suspirou – preciso conversar com você. Tem tanta coisa que eu preciso lhe falar, que dói em mim desde o dia...
- Letícia, não quero alimentar nada entre a gente...
- Eu falei, por algum acaso, em alimentar coisa alguma?
- Não, mas eu também...
- Então, você vai e pronto. Encontro você ás dez.
Desligou o telefone justamente quando o sinal abria. Bati com a mão no volante, irritada pelas poucas palavras e por ter atendido ao telefonema. Arranquei cantando os pneus.
IV.
Fui pensando pelo caminho até meu apartamento que fazia já algum tempo que não via Letícia desde nossa primeira e última transa. A verdade é que ela sempre me ligava, com alguma desculpa de última hora, para saber se eu iria sair, se ficaria mesmo em casa, mas jamais, na ausência de seu telefonema, pensei que pudesse ter encontrado um novo caso. O destino provaria o contrário no seguinte sábado.
Conforme programado, às 21:15, encontrei-me diante do meu guarda-roupa na eterna dúvida do que usar. A única peça de roupa que parecia adequada era um vestido preto, sem alças, um pouco acima dos joelhos. Retirei-o do cabide, moldei-o no corpo e até que a imagem não fora de todo mal. Soltei os cabelos que deram pequenos cachos atrás e ficaram ondulados à frente. Lápis, rímel, sombras, blush, gloss e eu estava pronta.
V.
Bati a campainha da pequena mansão na qual Roberta residia. Muitos carros parados à frente de sua casa, uma movimentação constante, mulheres em sua grande maioria, mulheres de todas as – deliciosas - maneiras. A casa estava realmente cheia, logo de entrada casais se agarrando, trocando carinhos explícitos em lugares mais escuros, enquanto o som ensurdecia possíveis gemidos, gritos e conversas. Cumprimentei alguns conhecidos, beijei algumas bochechas até que alcancei o pátio onde a maioria se encontrava. Perguntei por Roberta e indicaram-me uma tenda logo mais à frente, iluminada por velas e pequenas tochas fincadas nos jardins laterais. Logo que pus o pé sobre o tapete que decorava o ambiente, ouvi uma voz rouca e familiar me chamar.
- A-há! – e Roberta me abraçou de lado – você não ia faltar, não é mesmo? Tem cinco meninas para cada mulher – e sorriu com os olhos miúdos de embriagada.
- Mal cheguei, Rorô... controle-se, querida Wando!
Roberta deu uma gargalhada alta e recebeu alguns olhares curiosos. Deu de ombros à curiosidade alheia e voltou-se a mim:
- Darling, agora você segura o seu queixo, porque ele vai querer cai.
- Ah é? Porquê?
Roberta apontou para uma mesa onde duas mulheres sentadas trocavam calmamente algumas palavras. Uma delas já havia percebido a minha presença e olhava hipnoticamente para mim, sem interromper a fala. Forçei um pouco as vistas e então reconheci Amanda, maravilhosamente vestida com uma blusa vermelha tão decotada quanto a minha. Sorri levantando a mão e acenando, enquanto ela respondia da mesma maneira. Ao seu lado, notei que a figura também me era familiar e só depois de me aproximar um pouco mais que pude reconhecer a figura. Os braços, o desenho quadrangular do rosto, os olhos amendoados, o sorriso lascivo sempre desenhado na boca... e Ana reapareceu milagrosamente como sempre faz.
E antes que eu pudesse me aproximar da mesa, senti Roberta segurar meus ombros por trás e sussurrar “agora vem a parte bombante”. Por trás de um casal que estava em pé perto da mesa, eis que aparece Letícia, com os mesmo cabelos dourados agora presos numa espécie de coque, com dois copos nas mãos. Coloca um dos copos à frente de Ana e a beija nos lábios, enquanto Ana leva a mão à sua nuca, de um jeito que eu conhecia e com uma pressão que eu poderia descrever. A cena parecia agora quase tocável, embora dentro de mim uma avalanche desmesurada houvesse se principiado. O que eu mais temia – que era ver Ana nos braços de outrem – havia se configurado e o outrem era Letícia. Vitória ou derrota, a revanche ou apenas destino, a verdade é que ao final do beijo, as duas acabaram por repousar o olhar sobre mim, ali completamente apavorada e sem reação. Abordei o primeiro garçom que passava por ali com uma bandeja cheia de copos de whiskie e aproveitei para pegar dois, tomei-o um gole só e o outro continuou, trêmula, na outra mão. Caminhei em direção à mesa, com Roberta à minha cola, segurando-me pela cintura, caso eu ameaçasse sair correndo para bem longe dali.
Sunday, October 29, 2006
Sunday, October 22, 2006
À espera...
(O texto ficou longo, confesso. Irritante isso de ser quase "pernóstica". Mas, aqui vai meu conselho: está sem paciência? Vá para outro blog. Esse texto pede pra ser lido do começo ao fim. Meu soluço egoísta faz essa exigência. Se quer ler essa minha "quase-literatura", vá até o fim!)
Percorri os canais da TV uma última vez antes de levantar-me. Àquela hora da noite, poucos programas pareciam atraentes e, diante do marasmo de um sábado chuvoso, pouco havia a ser feito. Conferi no digital do meu pulso o horário: “22:24”. Lancei o olhar na taça ainda molhada do vinho tinto, na chama do cigarro que se extinguia, lançando línguas de fumaça no ar. Tomei-o entre os dedos, suguei o último trago, fechando os olhos enquanto a fumaça se desprendia de minhas narinas e bocas. Permaneci um tempo ali, deitada com a cabeça encostada no braço do meu sofá negro, olhos fixos no teto até que a última nuvem de fumaça se dissipasse no ar. Voltei o olhar à televisão, oscilei a minha vontade entre continuar ali deitada ou ir até a cozinha. Ao sentir um gosto amargo e seco em minha boca, impulsionei o corpo pra cima e em um segundo, já estava em pé.
No primeiro contato do meu pé descalço com o chão gelado da minha cozinha, decorado com azulejos brancos e pretos alternadamente posicionados como em tabuleiros de dama, senti um arrepio frio percorrer-me a espinha. Estremeci. A geladeira, estrategicamente posicionada entre armários embutidos e a pia, era o grande monumento da minha cozinha planejada, tão sobriamente decorada. Com uma mão no bolso e a outra na porta, fiquei alguns longos minutos “assistindo” ao festival de cinema trash da minha empobrecida geladeira: algumas frutas, sucos de validade duvidosa, latas de condimentos, uma embalagem redonda de papelão cujo único pedaço de pizza que ali jazia parecia tomar formas vivas, um falecido apresuntado, vinho. Tomei a garrafa verde-escura nas mãos e, conferindo que havia poucos goles a serem tomados, encostei o gargalo frio nos meus lábios e, inclinando a cabeça para trás, deixei que o líquido doce escorresse pela minha garganta, permitindo que algumas atrevidas gotas escapulissem da minha boca, deslizando pelo meu queixo e pescoço abaixo.
Retornei ao sofá, agora um pouco mais sonolenta. Deitei na mesma posição de anteriormente, porém, dessa vez, com o olhar direcionado para os outdoors dos prédios vizinhos ao meu. O reflexo da televisão nas duas grandes janelas misturados aos raios luminosos que a atravessavam foi me adormecendo, aliviando as tensões dos músculos e, no meu último suspiro acordada, lutei contra o peso das pálpebras, mas logo me rendi ao sono.
Acordei subitamente. O coração acelerado impulsionava um sangue raivoso e veloz nas minhas veias, que dilatavam e imprimiam em todo corpo uma pressão aterrorizante. Ouvi barulhos de chaves, maçanetas sendo tocadas, porta fechando, passos firmes e ritmados, uma respiração ofegante que eu consegui perceber mesmo com o barulho da chuva fina sobre a janela da sala. Os passos foram se aproximando, cada vez mais audíveis, até que a silhueta alcançou a porta da sala onde eu me encontrava, muito provavelmente guiada pelo barulho da televisão.
Parou no vão da porta, com as mãos apoiadas nas partes internas da parede. Vestida com um sobretudo preto, de grandes botões também negros, a silhueta se esclareceu pra mim. Quando reconheci os traços de Ana, um aporte louco de medo, desespero, surpresa, calor explodiu no meu ventre e de lá se espalhou, adormecendo membros e sentidos a cada nova inspiração. Apenas pude observá-la, com o cabelo molhado e solto, o rosto molhado onde algumas gotas d’água deslizavam e se escondiam logo abaixo do queixo. Busquei os olhos de Ana, que pareciam duas grandes telas, sem qualquer tom de medo, de susto, apenas uma essência vermelha que me assistia como eu assistia a ela. Li em seus olhos: desejo. A fragrância que sempre usava embriagou a minha sala e a mim também. Silêncio.
Ana caminhou alguns passos em minha direção; fiz menção de levantar. Ela se precipitou sobre mim: levantou uma das pernas, sentou-se sobre o meu colo, de modo que eu ficava entre suas pernas com seu dorso a minha frente. Arrepiei todos os pêlos, estremeci toda a espinha. Abri a boca, com a menção de falar, mas sem a capacidade de articular qualquer vocábulo. Ela se precipitou sobre mim de novo e, com um dos dedos sobre os meus lábios, fez o meu silêncio. Sorriu deliciosamente, como se eu ali, em meio a suas pernas, fosse uma presa capturada, refém, entregue, completamente dela. Arqueou uma das sobrancelhas, com o vestígio do sorriso ainda na boca; tomou uma das minhas mãos e colocou-a sobre sua coxa direita, um pouco acima do joelho. Senti a calor de seu corpo pela primeira vez em tanto tempo. Uma fisgada de prazer apunhalou meu ventre e entranhas, me fazendo fechar os olhos e abandonar a cabeça. Ana viu e, com a outra mão livre, percorreu meu ombro direito, meu pescoço, até conseguir segurar minha nuca e, numa vontade quase selvagem, puxou-me contra ela, grudando seus lábios nos meus, invadindo furiosamente minha boca com sua língua, rodando-a, molhando-me, perpertuando o momento. Quando me soltou, já não era mais a mesma: havia me fundido às sensações e a presença dela. Tarde demais para voltar atrás.
Tentei levantar o meu tronco do sofá para bem perto do corpo de Ana, mas ela me empurrou de volta, reajeitando seu corpo sobre o meu de um jeito que sua anca repousava sobre a minha numa pressão incrivelmente prazerosa. Deixei escapar um gemido, ela sorriu: pressionou, agora mais forte, o ventre sobre mim. Segurei sua cintura e respondi ao gesto fazendo outra pressão sobre ela. Ana mordeu os lábios e eu me rendi completamente aos caprichos dela. Na sua sagacidade fora do comum, Ana percebeu minha rendição. Buscou os botões do casaco e, debaixo para cima, um por um, foi desabotoando-o. Logo que avistei sua pele clara sobre o casado, senti algo úmido e quente deixar-me o corpo e provocar fortes contrações de gozo. Ana tomou-me as mãos de novo e me fez toca-la no percurso que começou nas coxas, passou pelo quadril, cintura, costas e, finalmente, seus seios. Intumescidos e amarronzados, deslizei a ponta de meus dedos sobre eles, ora de modo circular, ora apenas acariciando-os. Ficavam mais ainda perceptíveis e Ana contorcia-se ali, sentada sobre o meu corpo, segurando meus braços. Sob aquele sobretudo, Ana vestia apenas uma calçinha preta de renda (deveras clichê, mas incrivelmente sensual). Ana gemeu baixinho, sempre mostrando seus dentes brancos, pérolas lascivas que me prometiam loucas e escandalosas mordidas. Pouco tempo fiquei ali, desejando seus seios e lancei-me ao encontro deles. Ana tentou me frear, mas retirei suas mãos de mim, acobertando de beijos os mesmos seios redondos. Ela deu um pequeno grito, mas assim que sentiu o quente dos meus lábios sobre seu corpo, a resposta foi instantânea e puxou-me pra mais e mais perto dela. Abraçava-me, puxava meus cabelos, obrigando a alternar ora em um ora em outro seio. Antes que eu cantasse as pedras do jogo, ela me rejeitou, saiu de cima de mim, encostou-se a parede e silabou “vem” para mim. Levantei-me num só impulso do sofá e fui ao encontro dela. Empurrei meu corpo contra o dela e contra a parede, levantei uma de suas pernas e coloquei a minha entre elas, sem deixar que Ana pudesse escapar. Tentei prende-la algum tempo ali, mas ela conseguiu reverter a situação, imobilizando-me e colocando-me sentada no mesmo sofá no qual me encontrara.
- Fique aí e só sai quando eu te chamar... – dando uma ênfase dengosa ao eu.
Sem reação e em completo torpor, não relutei a imposição. Antes de se sentar no sofá à minha frente, Ana ficou de costas para mim e retirou lentamente a calcinha, jogando-a longe. Observei a tudo que ela fazia e a cada novo gesto, outra onda úmida e quente se pronunciava no meu ventre.
Ana sentou-se à minha frente, apoiou uma de suas pernas sobre o assento do sofá e separou os joelhos. Pude ver suas partes, inchadas e molhadas, logo ali. O impulso selvagem era o de atracar-me ao corpo dela, fundir sua vontade a minha vontade mas, fui capaz apenas de me prender a cena, ao sofá e ao gozo absurdo que a cena me proporcionava. Ana lançou um olhar voluptuoso enquanto levava sua mão as suas mesmas partes. Não acreditava na cena, era tudo ainda muito surreal: Ana, de volta a minha realidade (ou a isso que aconteceu), se tocando ali a minha frente, produzindo gemidos tão familiares, enquanto olhava pra mim, dizendo palavras que jamais pensaria em ouvir, confessando desejos que eu me deliciei até mesmo só de os imaginar sendo satisfeitos. Eu quase podia sentir as partes de Ana latejando, inchadas, encharcadas com esse seu fluido. Levantei do sofá, ela também se levantou. Correu um pouco de mim, rindo da minha “gula” por ela. Quando a alcancei perto da mesa dessa mesma sala, ela me segurou de novo e, enquanto sentava-se sobre a mesa, eu fui retirando a minha camisa, já enxarcada de suor. Quando se voltou a mim e me viu ofegante, Ana pronunciou o mesmo sorriso safado que costumava me oferecer. Puxou-me pela cintura, colocando-me entre suas pernas e, retirando a minha pequena – quase minúscula – bermuda, para que eu sentisse a umidade e a temperatura em que se encontrava suas intimidades. Ao primeiro contato, deixei escapar um gemido e Ana adorou a minha submissão naquele gesto. Olhei-a com os olhos perdidos, implorando paz, mas Ana me invadia com sua presença, com seu sexo, com sua fragrância e, num momento fatal, invadi seu sexo com meus dedos. Ana gritou, gemeu em forte e bom tom, ritmando seu corpo contra a minha mão que a penetrava. Inclinava-se, deitava sobre a mesa, mordia os lábios, retornava a posição, me arranhava, me mordia, tentava se desvencilhar pra que eu, heroicamente, a fizesse voltar ao seu lugar, invadindo-a de novo. Sentia seu fluido molhar meus dedos a cada nova invasão, ao som de seus gemidos, ao sabor salgado de seu pescoço agora também encharcado pelo suor. Pouco tempo e Ana segurou-me muito mais forte, abraçou meu corpo, forçando a entrada de meus dedos até pontos que eu não saberia que iriam. Numa ânsia de unir seu corpo ao meu, como se aquela fosse nosso último momento como um corpo só, um só desejo. Puxou-me os cabelos e posicionou meu rosto à frente do seu e sussurou, com um tom que eu ainda preciso decifrar, as seguintes palavras:
- “É tudo seu, Lisa. Sempre foi... eu te a...”
E interrompeu a frase com um gemido alto e ensurdecedor, mas loucamente excitante, num gozo forte, completo e inteiriço, estremecendo suas extremidades, consumindo suas forças, abandonando o plano do meu apartamento e indo para um outro qualquer, transcendental a esse. Naquele momento, não precisei do complemento da frase. Ana estava de volta, mais minha, mais nossa.
Agora, olho para fora desse apartamento, com a TV desligada, repassando tudo. Lembro-me de que logo depois desse espetáculo orgásmico, ela se vestiu, com lágrimas nos olhos, o corpo ainda dormente. Reiterou do casaco, correu em direção a porta e, antes que eu pudesse detê-la, ela simplesmente saiu naquela madrugada de sábado pra não mais voltar. Tentei deixar recados em sua caixa postal, no trabalho. Quando finalmente, recebi resposta, ela veio com a voz feminina do mesmo dia do telefonema:
- A Ana acabou de entrar pro banho. Pediu pra você ligar depois. É do escritório?
Desvencilhei-me da resposta, confirmando o que foi a pergunta dessa mulher que eu recusava reconhecer como a pessoa que faria companhia a Ana, a que tomava meu lugar. Agora, aqui nesse mesmo sofá, com a mesma taça de vinho, o mesmo cigarro acesso, ainda espero o momento em que Ana me acordará desse sonho. Ilusão ou não, ainda prefiro a luz de néon dessa imagem pintada de Ana, do que a certeza de que nada além da minha imaginação constrói essa realidade fria e caótica que eu vivo.
Percorri os canais da TV uma última vez antes de levantar-me. Àquela hora da noite, poucos programas pareciam atraentes e, diante do marasmo de um sábado chuvoso, pouco havia a ser feito. Conferi no digital do meu pulso o horário: “22:24”. Lancei o olhar na taça ainda molhada do vinho tinto, na chama do cigarro que se extinguia, lançando línguas de fumaça no ar. Tomei-o entre os dedos, suguei o último trago, fechando os olhos enquanto a fumaça se desprendia de minhas narinas e bocas. Permaneci um tempo ali, deitada com a cabeça encostada no braço do meu sofá negro, olhos fixos no teto até que a última nuvem de fumaça se dissipasse no ar. Voltei o olhar à televisão, oscilei a minha vontade entre continuar ali deitada ou ir até a cozinha. Ao sentir um gosto amargo e seco em minha boca, impulsionei o corpo pra cima e em um segundo, já estava em pé.
No primeiro contato do meu pé descalço com o chão gelado da minha cozinha, decorado com azulejos brancos e pretos alternadamente posicionados como em tabuleiros de dama, senti um arrepio frio percorrer-me a espinha. Estremeci. A geladeira, estrategicamente posicionada entre armários embutidos e a pia, era o grande monumento da minha cozinha planejada, tão sobriamente decorada. Com uma mão no bolso e a outra na porta, fiquei alguns longos minutos “assistindo” ao festival de cinema trash da minha empobrecida geladeira: algumas frutas, sucos de validade duvidosa, latas de condimentos, uma embalagem redonda de papelão cujo único pedaço de pizza que ali jazia parecia tomar formas vivas, um falecido apresuntado, vinho. Tomei a garrafa verde-escura nas mãos e, conferindo que havia poucos goles a serem tomados, encostei o gargalo frio nos meus lábios e, inclinando a cabeça para trás, deixei que o líquido doce escorresse pela minha garganta, permitindo que algumas atrevidas gotas escapulissem da minha boca, deslizando pelo meu queixo e pescoço abaixo.
Retornei ao sofá, agora um pouco mais sonolenta. Deitei na mesma posição de anteriormente, porém, dessa vez, com o olhar direcionado para os outdoors dos prédios vizinhos ao meu. O reflexo da televisão nas duas grandes janelas misturados aos raios luminosos que a atravessavam foi me adormecendo, aliviando as tensões dos músculos e, no meu último suspiro acordada, lutei contra o peso das pálpebras, mas logo me rendi ao sono.
Acordei subitamente. O coração acelerado impulsionava um sangue raivoso e veloz nas minhas veias, que dilatavam e imprimiam em todo corpo uma pressão aterrorizante. Ouvi barulhos de chaves, maçanetas sendo tocadas, porta fechando, passos firmes e ritmados, uma respiração ofegante que eu consegui perceber mesmo com o barulho da chuva fina sobre a janela da sala. Os passos foram se aproximando, cada vez mais audíveis, até que a silhueta alcançou a porta da sala onde eu me encontrava, muito provavelmente guiada pelo barulho da televisão.
Parou no vão da porta, com as mãos apoiadas nas partes internas da parede. Vestida com um sobretudo preto, de grandes botões também negros, a silhueta se esclareceu pra mim. Quando reconheci os traços de Ana, um aporte louco de medo, desespero, surpresa, calor explodiu no meu ventre e de lá se espalhou, adormecendo membros e sentidos a cada nova inspiração. Apenas pude observá-la, com o cabelo molhado e solto, o rosto molhado onde algumas gotas d’água deslizavam e se escondiam logo abaixo do queixo. Busquei os olhos de Ana, que pareciam duas grandes telas, sem qualquer tom de medo, de susto, apenas uma essência vermelha que me assistia como eu assistia a ela. Li em seus olhos: desejo. A fragrância que sempre usava embriagou a minha sala e a mim também. Silêncio.
Ana caminhou alguns passos em minha direção; fiz menção de levantar. Ela se precipitou sobre mim: levantou uma das pernas, sentou-se sobre o meu colo, de modo que eu ficava entre suas pernas com seu dorso a minha frente. Arrepiei todos os pêlos, estremeci toda a espinha. Abri a boca, com a menção de falar, mas sem a capacidade de articular qualquer vocábulo. Ela se precipitou sobre mim de novo e, com um dos dedos sobre os meus lábios, fez o meu silêncio. Sorriu deliciosamente, como se eu ali, em meio a suas pernas, fosse uma presa capturada, refém, entregue, completamente dela. Arqueou uma das sobrancelhas, com o vestígio do sorriso ainda na boca; tomou uma das minhas mãos e colocou-a sobre sua coxa direita, um pouco acima do joelho. Senti a calor de seu corpo pela primeira vez em tanto tempo. Uma fisgada de prazer apunhalou meu ventre e entranhas, me fazendo fechar os olhos e abandonar a cabeça. Ana viu e, com a outra mão livre, percorreu meu ombro direito, meu pescoço, até conseguir segurar minha nuca e, numa vontade quase selvagem, puxou-me contra ela, grudando seus lábios nos meus, invadindo furiosamente minha boca com sua língua, rodando-a, molhando-me, perpertuando o momento. Quando me soltou, já não era mais a mesma: havia me fundido às sensações e a presença dela. Tarde demais para voltar atrás.
Tentei levantar o meu tronco do sofá para bem perto do corpo de Ana, mas ela me empurrou de volta, reajeitando seu corpo sobre o meu de um jeito que sua anca repousava sobre a minha numa pressão incrivelmente prazerosa. Deixei escapar um gemido, ela sorriu: pressionou, agora mais forte, o ventre sobre mim. Segurei sua cintura e respondi ao gesto fazendo outra pressão sobre ela. Ana mordeu os lábios e eu me rendi completamente aos caprichos dela. Na sua sagacidade fora do comum, Ana percebeu minha rendição. Buscou os botões do casaco e, debaixo para cima, um por um, foi desabotoando-o. Logo que avistei sua pele clara sobre o casado, senti algo úmido e quente deixar-me o corpo e provocar fortes contrações de gozo. Ana tomou-me as mãos de novo e me fez toca-la no percurso que começou nas coxas, passou pelo quadril, cintura, costas e, finalmente, seus seios. Intumescidos e amarronzados, deslizei a ponta de meus dedos sobre eles, ora de modo circular, ora apenas acariciando-os. Ficavam mais ainda perceptíveis e Ana contorcia-se ali, sentada sobre o meu corpo, segurando meus braços. Sob aquele sobretudo, Ana vestia apenas uma calçinha preta de renda (deveras clichê, mas incrivelmente sensual). Ana gemeu baixinho, sempre mostrando seus dentes brancos, pérolas lascivas que me prometiam loucas e escandalosas mordidas. Pouco tempo fiquei ali, desejando seus seios e lancei-me ao encontro deles. Ana tentou me frear, mas retirei suas mãos de mim, acobertando de beijos os mesmos seios redondos. Ela deu um pequeno grito, mas assim que sentiu o quente dos meus lábios sobre seu corpo, a resposta foi instantânea e puxou-me pra mais e mais perto dela. Abraçava-me, puxava meus cabelos, obrigando a alternar ora em um ora em outro seio. Antes que eu cantasse as pedras do jogo, ela me rejeitou, saiu de cima de mim, encostou-se a parede e silabou “vem” para mim. Levantei-me num só impulso do sofá e fui ao encontro dela. Empurrei meu corpo contra o dela e contra a parede, levantei uma de suas pernas e coloquei a minha entre elas, sem deixar que Ana pudesse escapar. Tentei prende-la algum tempo ali, mas ela conseguiu reverter a situação, imobilizando-me e colocando-me sentada no mesmo sofá no qual me encontrara.
- Fique aí e só sai quando eu te chamar... – dando uma ênfase dengosa ao eu.
Sem reação e em completo torpor, não relutei a imposição. Antes de se sentar no sofá à minha frente, Ana ficou de costas para mim e retirou lentamente a calcinha, jogando-a longe. Observei a tudo que ela fazia e a cada novo gesto, outra onda úmida e quente se pronunciava no meu ventre.
Ana sentou-se à minha frente, apoiou uma de suas pernas sobre o assento do sofá e separou os joelhos. Pude ver suas partes, inchadas e molhadas, logo ali. O impulso selvagem era o de atracar-me ao corpo dela, fundir sua vontade a minha vontade mas, fui capaz apenas de me prender a cena, ao sofá e ao gozo absurdo que a cena me proporcionava. Ana lançou um olhar voluptuoso enquanto levava sua mão as suas mesmas partes. Não acreditava na cena, era tudo ainda muito surreal: Ana, de volta a minha realidade (ou a isso que aconteceu), se tocando ali a minha frente, produzindo gemidos tão familiares, enquanto olhava pra mim, dizendo palavras que jamais pensaria em ouvir, confessando desejos que eu me deliciei até mesmo só de os imaginar sendo satisfeitos. Eu quase podia sentir as partes de Ana latejando, inchadas, encharcadas com esse seu fluido. Levantei do sofá, ela também se levantou. Correu um pouco de mim, rindo da minha “gula” por ela. Quando a alcancei perto da mesa dessa mesma sala, ela me segurou de novo e, enquanto sentava-se sobre a mesa, eu fui retirando a minha camisa, já enxarcada de suor. Quando se voltou a mim e me viu ofegante, Ana pronunciou o mesmo sorriso safado que costumava me oferecer. Puxou-me pela cintura, colocando-me entre suas pernas e, retirando a minha pequena – quase minúscula – bermuda, para que eu sentisse a umidade e a temperatura em que se encontrava suas intimidades. Ao primeiro contato, deixei escapar um gemido e Ana adorou a minha submissão naquele gesto. Olhei-a com os olhos perdidos, implorando paz, mas Ana me invadia com sua presença, com seu sexo, com sua fragrância e, num momento fatal, invadi seu sexo com meus dedos. Ana gritou, gemeu em forte e bom tom, ritmando seu corpo contra a minha mão que a penetrava. Inclinava-se, deitava sobre a mesa, mordia os lábios, retornava a posição, me arranhava, me mordia, tentava se desvencilhar pra que eu, heroicamente, a fizesse voltar ao seu lugar, invadindo-a de novo. Sentia seu fluido molhar meus dedos a cada nova invasão, ao som de seus gemidos, ao sabor salgado de seu pescoço agora também encharcado pelo suor. Pouco tempo e Ana segurou-me muito mais forte, abraçou meu corpo, forçando a entrada de meus dedos até pontos que eu não saberia que iriam. Numa ânsia de unir seu corpo ao meu, como se aquela fosse nosso último momento como um corpo só, um só desejo. Puxou-me os cabelos e posicionou meu rosto à frente do seu e sussurou, com um tom que eu ainda preciso decifrar, as seguintes palavras:
- “É tudo seu, Lisa. Sempre foi... eu te a...”
E interrompeu a frase com um gemido alto e ensurdecedor, mas loucamente excitante, num gozo forte, completo e inteiriço, estremecendo suas extremidades, consumindo suas forças, abandonando o plano do meu apartamento e indo para um outro qualquer, transcendental a esse. Naquele momento, não precisei do complemento da frase. Ana estava de volta, mais minha, mais nossa.
Agora, olho para fora desse apartamento, com a TV desligada, repassando tudo. Lembro-me de que logo depois desse espetáculo orgásmico, ela se vestiu, com lágrimas nos olhos, o corpo ainda dormente. Reiterou do casaco, correu em direção a porta e, antes que eu pudesse detê-la, ela simplesmente saiu naquela madrugada de sábado pra não mais voltar. Tentei deixar recados em sua caixa postal, no trabalho. Quando finalmente, recebi resposta, ela veio com a voz feminina do mesmo dia do telefonema:
- A Ana acabou de entrar pro banho. Pediu pra você ligar depois. É do escritório?
Desvencilhei-me da resposta, confirmando o que foi a pergunta dessa mulher que eu recusava reconhecer como a pessoa que faria companhia a Ana, a que tomava meu lugar. Agora, aqui nesse mesmo sofá, com a mesma taça de vinho, o mesmo cigarro acesso, ainda espero o momento em que Ana me acordará desse sonho. Ilusão ou não, ainda prefiro a luz de néon dessa imagem pintada de Ana, do que a certeza de que nada além da minha imaginação constrói essa realidade fria e caótica que eu vivo.
Saturday, October 14, 2006
Pra ser sincera
(Preâmbulo completamente dispensável)
Anacrônico foi o primeiro título que dei a esse rascunho mal-feito e desenfreado. Anacrônico como eu, anacrônico na sua insensatez. Aos leitores dispostos a seguir, meu descompromisso com a lógica, a veracidade, ou aquele sentimento delicioso de se sentir "escrito" por palavras alheias. Rabiscos são rabiscos e não passam do esboço da realidade fugida e "irretratável". Aos que mesmo assim, até aqui se dispuseram, vão e leiam! Se sairem os mesmos de antes, estará saldada a nossa "dívida". Caso contrário...
Fotografias e jornais jogados pelo carpete da sala; um café que esfria na mesa de centro, um cigarro que se esvazia no cinzeiro negro, ali, bem ao lado do café. Eu, daqui, olhando a pouca iluminação da rua e o vazio completo e absoluto. O silêncio óbvio e impenetrável. Os passos cansados, ritmados, freqüentes, lá fora. Alguns ruídos mais fortes de carros, ônibus, freios, buzinas, bicicletas, pensamentos. As paredes, em tons claros e inertes, enjaulam a fera que perambula mordida pelo apartamento a enxergar as últimas nuvens de fumaça preta que pairam no ar.
Li e reli seus dizeres, saboreando cada palavra, consumindo essa sua vontade de me atingir numa gula sufocante de absorver tudo. Ainda me perco entre o que você disse, entre o que já havia dito e o que eu não entendi – ou que não quis. Parecia tão simples: sonhar um sonho irreal, alimentar um fogo no meio do inverno, dar asas a uma bala de canhão. Parecia, não o é. Esse ser abrasivo, misterioso e complexo que você me personifica é só uma ilusão.
Meu crime sem castigo, seu aperto de mão.
Pensei tanto nessas últimas horas no meu sentido, nesse sentido que você enxerga tão claro e parece tão pouco certo pra mim. Conversei com ela sobre as minhas dificuldades. Contei para ela quase tudo e ficarei com quase nada. Aliás, ficarei com a frase com a qual ela me deixou “eu deveria temer tudo isso”. Ela deveria? Eu deveria? Meus crimes perfeitos, que quase nunca deixam suspeitos, me fazem de vítima, corroem tudo que há de bom em mim e, é agora, nesse quase nada nas mãos, que tudo é iluminado. Quero te explicar tanta coisa...
Quero um momento pra ser real, tocar nas coisas que ainda não pude sentir, segurar em algo e me sentir pertencente a algum lugar. Andei vagando tanto tempo por aí, entre possibilidades e despedidas, entre conquistas e retiradas, que já não sei de onde venho. Tão clichê, mas é isso: sou um chavão tão óbvio que cega. Foi preciso que você me ferisse, como o fez, pra que eu me libertasse dessa espécie de vício: o costume de partir na hora mais crítica, a mania de envolver, seduzir, controlar, manipular, partir, partir e partir. Enfiar as mãos nos bolsos sem olhar para trás, para não deixar nada ali. Ela está certa quando me diz agora que deveria temer. Eu também temo. Não quero nem pensar nas cicatrizes...
Sem delongas, queria pedir desculpas a todos os corações que já foram partidos. Não por mim, mas pelas outras almas – tão “ingratas” quanto a minha. A todos os corações que – como o seu – sofreram pela estupidez de outros. Se houvesse maneira, eu gritaria a todos os casos mal resolvidos, a todas as amantes abandonadas, a todos os soluços no meio da noite, a todas as esperas do chamado do telefone, para se alegrarem pois não há dor maior do que aquela que nos é inerente e não depende da presença de ninguém. Enquanto você chora pela minha ausência, vou gastar lágrimas e licores e novos amores tentando descobrir porque nenhum lugar parece me acolher, porque ninguém parece o bastante. Os erros continuaram os mesmos, as vítimas serão outras, até que o jogo seja enfadonho e se volte contra mim.
Ainda que você me entenda tão bem, eu preciso me entender.
Não fique com raiva, não pense que joguei com as cartas da vaidade, não pare de ouvir as músicas, não se esqueça dos meus-seus momentos de cumplicidade, dos minutos contados no telefone, das nossas risadas, de tudo aquilo que, por um momento, foi seu mundo. Se foi meu, já não importa. Quando as canções forem mais claras e mais sentidas, quando as noites parecem tão mais longas e dolorosas, nem se atreva a pensar em mim. Pode ser tentador, mas seria estúpido. Tão imbecil quanto seria se eu ficasse, quando parte de mim se perde(a poeira no vento). No meu caminho tortuoso, apagado, sem propósito visível, ainda só há o espaço suficiente para não me sufocar. Um dia , quem sabe, eu encontre a razão da minha "fugacidade". Por enquanto, fico com as pegadas que deixo pra ninguém decifrar.
Meu crime – ainda – sem castigo... seu aperto de mão.
Anacrônico foi o primeiro título que dei a esse rascunho mal-feito e desenfreado. Anacrônico como eu, anacrônico na sua insensatez. Aos leitores dispostos a seguir, meu descompromisso com a lógica, a veracidade, ou aquele sentimento delicioso de se sentir "escrito" por palavras alheias. Rabiscos são rabiscos e não passam do esboço da realidade fugida e "irretratável". Aos que mesmo assim, até aqui se dispuseram, vão e leiam! Se sairem os mesmos de antes, estará saldada a nossa "dívida". Caso contrário...
"I am a question to the world
Not an answer to be heard" (Goo Goo Dolls)
Fotografias e jornais jogados pelo carpete da sala; um café que esfria na mesa de centro, um cigarro que se esvazia no cinzeiro negro, ali, bem ao lado do café. Eu, daqui, olhando a pouca iluminação da rua e o vazio completo e absoluto. O silêncio óbvio e impenetrável. Os passos cansados, ritmados, freqüentes, lá fora. Alguns ruídos mais fortes de carros, ônibus, freios, buzinas, bicicletas, pensamentos. As paredes, em tons claros e inertes, enjaulam a fera que perambula mordida pelo apartamento a enxergar as últimas nuvens de fumaça preta que pairam no ar.
Li e reli seus dizeres, saboreando cada palavra, consumindo essa sua vontade de me atingir numa gula sufocante de absorver tudo. Ainda me perco entre o que você disse, entre o que já havia dito e o que eu não entendi – ou que não quis. Parecia tão simples: sonhar um sonho irreal, alimentar um fogo no meio do inverno, dar asas a uma bala de canhão. Parecia, não o é. Esse ser abrasivo, misterioso e complexo que você me personifica é só uma ilusão.
Meu crime sem castigo, seu aperto de mão.
Pensei tanto nessas últimas horas no meu sentido, nesse sentido que você enxerga tão claro e parece tão pouco certo pra mim. Conversei com ela sobre as minhas dificuldades. Contei para ela quase tudo e ficarei com quase nada. Aliás, ficarei com a frase com a qual ela me deixou “eu deveria temer tudo isso”. Ela deveria? Eu deveria? Meus crimes perfeitos, que quase nunca deixam suspeitos, me fazem de vítima, corroem tudo que há de bom em mim e, é agora, nesse quase nada nas mãos, que tudo é iluminado. Quero te explicar tanta coisa...
Quero um momento pra ser real, tocar nas coisas que ainda não pude sentir, segurar em algo e me sentir pertencente a algum lugar. Andei vagando tanto tempo por aí, entre possibilidades e despedidas, entre conquistas e retiradas, que já não sei de onde venho. Tão clichê, mas é isso: sou um chavão tão óbvio que cega. Foi preciso que você me ferisse, como o fez, pra que eu me libertasse dessa espécie de vício: o costume de partir na hora mais crítica, a mania de envolver, seduzir, controlar, manipular, partir, partir e partir. Enfiar as mãos nos bolsos sem olhar para trás, para não deixar nada ali. Ela está certa quando me diz agora que deveria temer. Eu também temo. Não quero nem pensar nas cicatrizes...
Sem delongas, queria pedir desculpas a todos os corações que já foram partidos. Não por mim, mas pelas outras almas – tão “ingratas” quanto a minha. A todos os corações que – como o seu – sofreram pela estupidez de outros. Se houvesse maneira, eu gritaria a todos os casos mal resolvidos, a todas as amantes abandonadas, a todos os soluços no meio da noite, a todas as esperas do chamado do telefone, para se alegrarem pois não há dor maior do que aquela que nos é inerente e não depende da presença de ninguém. Enquanto você chora pela minha ausência, vou gastar lágrimas e licores e novos amores tentando descobrir porque nenhum lugar parece me acolher, porque ninguém parece o bastante. Os erros continuaram os mesmos, as vítimas serão outras, até que o jogo seja enfadonho e se volte contra mim.
Ainda que você me entenda tão bem, eu preciso me entender.
Não fique com raiva, não pense que joguei com as cartas da vaidade, não pare de ouvir as músicas, não se esqueça dos meus-seus momentos de cumplicidade, dos minutos contados no telefone, das nossas risadas, de tudo aquilo que, por um momento, foi seu mundo. Se foi meu, já não importa. Quando as canções forem mais claras e mais sentidas, quando as noites parecem tão mais longas e dolorosas, nem se atreva a pensar em mim. Pode ser tentador, mas seria estúpido. Tão imbecil quanto seria se eu ficasse, quando parte de mim se perde(a poeira no vento). No meu caminho tortuoso, apagado, sem propósito visível, ainda só há o espaço suficiente para não me sufocar. Um dia , quem sabe, eu encontre a razão da minha "fugacidade". Por enquanto, fico com as pegadas que deixo pra ninguém decifrar.
Meu crime – ainda – sem castigo... seu aperto de mão.
Sunday, October 08, 2006
Vou-me embora pra Pasárgada também
E é sempre por acaso que a vida acontece. É por acaso que nascemos, que crescemos, que fazemos escolhas, é por acaso que certas aptidões aparecem e outras se apagam. Aleatoriamente, as pessoas vêm e vão, sem que sejamos capazes de apontar as que deveriam ficar e as que deveriam sair de nossas vidas. A morte é um evento simplesmente probabilístico. Somos dados num espaço amostral de mais incertezas que probabilidades. Foi por acaso que num desses dias, meus dedos foram mais ágeis do que a consciência cega:
- Alô?
- Quem fala? – respiração ligeiramente descompassada.
Ela responde do outro lado da linha. Talvez já se sinta tocado pelo meu tom de voz, tom que ela tanto conhece. Assim mesmo, identifico-me. Levo a mão à testa, arrependo-me pelo meio segundo que me sobrou de tempo entre a resposta e continuo:
- Tanto tempo que não nos falamos que... – ela me interrompe
- Não crie desculpas para me ligar – pausadamente, retoma – você ligou e isso é suficiente.
- Se você diz... não queria incomodar... é que ás vezes... – emudeço a voz por alguns segundos, esperando que ela, do outro lado da linha, viesse com qualquer assunto que me resgatasse do sentimento patético - ... às vezes, não faz mal ligar sem motivo.
- Faz bem. Já tomou o seu café? – no mesmo tom inabalável.
- Faz alguns minutos... – lanço o olhar na xícara ainda morna, sob a mesa de centro da sala.
- Isso vai acabar com seu estômago qualquer dia desses... – ela acidamente critica.
- É ainda o que me sobra intacto.
- (...)
- E como estão as coisas? Fiquei sabendo da novidade da promoção...
- Ah é? – pigarreiou – saiu. Finalmente.
- Era o que você mais queria, né? Fico feliz por isso. – e eu esboço um sorriso “telefônico” visivelmente sarcástico.
- Você não costumava ser irônica. – num tom de voz entre ríspido e ressentido.
- Nem você costumava ir embora – eu retomo as rédeas.
- Ainda não, dá... é impossível conversar com você sem que essa arrogância exista...
- Agora sou arrogante? Há!
- Não disse isso... você entende o que convém.
- Você – ênfase – é o que convém.
Percebo que ela enche os pulmões de ar e, na minha lividez de assisti-la sem sequer observá-la, prevejo que levaria a mão à altura das sobrancelhas, franziria a testa e disparava:
- Sabe, Lisa? É por isso ainda que não lhe liguei. Você e esse seu orgulho ferido. Maldito orgulho ferido! - esbravejou.
- Tudo bem, Ana. Desculpas pela rispidez... é incontrolável. Sei que nem deveria lhe ligar, foi o que você pediu, mas eu...
- Não, Lisa! È... é bom ouvir você...
Continuou...
- ... tem algo na sua voz que ainda me ...
E uma terceira voz, também feminina, porém um pouco mais aveludada, invade a ligação:
- Ana, onde você guarda os cobertores? - silêncio.
Do outro lado da linha, á escuta, eu empalideço. Eu me espalho e me remonto tantas vezes, que ao voltar ao controle das ações, há partes dormentes, seriamente afetadas. Algumas partes ainda pelo chão. Ela, no que me pareceu uma dissimulação, desmonta o tom de voz da última frase e se volta a mim com um novo, casto e artificial:
- Preciso desligar, Lisa. Assim que puder, eu ligo para você. Agora é que...
- Não foi você quem disse para não inventar desculpas?
O período de tempo compreendido entre o fim da ligação e a hora que adormeci, confesso, não possuo mínima idéia. As avalanches em mim recomeçaram; morro a baixo, destruíram toda e qualquer pretensão. A terceira voz entrara pelos ouvidos com o peso da notícia desastrosa. Tudo em mim se desprendeu. As imagens que eu guardava de Ana: os dias dos cabelos molhados, as tardes em que passamos perambulando pelas ruas, as manhãs em que, ainda na cama, ficávamos horas deitadas com as bocas próximas, desvendando e reconhecendo-se uma na outra, as gargalhadas sempre bem vindas; toda reminiscência virara um desastroso conteúdo indigerível e intragável. O gosto amargo dos últimos dias ao lado dela parecia recente, era ontem. Éramos. Não somos mais. Lembrança por lembrança, a outra voz no fundo da ligação, foi corroendo, embebendo de dor e ódio a imagem de Ana. Levantei-me do sofá ainda com pernas e mãos dormentes, algum tremor nas pontas dos dedos. Andei um pouco sem direção pela casa. Abri e fechei a geladeira; liguei e desliguei o som. O tremor persistia; a voz impregnada no consciente; Ana e a raiva dela, Ana e o ódio dela, Ana e tudo aquilo que eu quis por Ana, Ana e só Ana. O vazio que brotou naquela hora talvez nem Ana preencheria. Todas as músicas de amor fariam sentido, todas as lágrimas despejadas teriam seu valor, todos os luares seriam mais dolorosos e melhor lembrados, todas as tardes na enseada, vagando perdida e sozinha, pareceriam mais minhas: o amor que eu sentia por Ana, num egoísmo anômalo, convertera-se em minha dor. O timbre da voz que destruía Ana em mim me atormentava e me libertava: havia cortado os finíssimos barbantes que me mantinham presa às sensações, às esperanças, a Ana. Era, finalmente, algo além de mim, ao acaso, apunhalando o mito de Ana no meu ser. “Ana não é mais sua”, uma voz gritava em mim, com o mesmo timbre da terceira voz ao telefone.
Vejo, hoje, que Ana ainda existe em mim e, embora com a mesma dor, é uma cicatriz (ou a tentativa disso...). Ana não é mais a Ana. Já se tornou a sombra dela, o que há de melhor nela em mim. Tamanho foi meu sentimento por ela que não me permiti guardar rancores e, por isso, são as virtudes de Ana que alegram meu sorriso sempre que a imagem dela me acode. Em mim, Ana é a brisa, o vento calmo e sereno que arrepia, gela, mas passa: é só o aviso parcimonioso de que existe um mar bravo além da costa. É a certeza da solidão que não desespera, é a música que toca no rádio e não entristece. Ana perdeu seu sentido: é o sentido por si mesma. Ana deixou de ser um nome e passou a ser um sentimento. Ana vive em mim. Talvez se ela repousasse seus ariscos olhos sobre o meu sóbrio olhar, por se enxergar tão brilhante e óbvia em mim, imagino que chorasse por algum tempo, sem secar as lágrimas - o que é de seu feitio. E se chorasse, eu sorriria – e não de felicidade, mas da cumplicidade que sempre nos foi peculiar.
Sei que perambula por aí, em outros braços, provando de outros beijos, vivendo uma outra vida que eu rejeitaria. Já sei que soa platônico e sonhador demais mas, preciso disso enquanto não encontrar a fenda certa que arranque-a para fora de mim. A outra voz no telefone agora lateja, mas não arde. É apenas o meu divisor d’águas. Entre agradecê-la pelo momento ou expurgá-la da minha identidade, prefiro conviver com a tranqüilidade mordida de que essa terceira voz me proporcionou. Bem ou mal, Ana ainda me pertence, mesmo que a voz que atualmente a envolva não seja a minha. Para esta, eu deixo a Ana que eu não quero mais.
- Alô?
- Quem fala? – respiração ligeiramente descompassada.
Ela responde do outro lado da linha. Talvez já se sinta tocado pelo meu tom de voz, tom que ela tanto conhece. Assim mesmo, identifico-me. Levo a mão à testa, arrependo-me pelo meio segundo que me sobrou de tempo entre a resposta e continuo:
- Tanto tempo que não nos falamos que... – ela me interrompe
- Não crie desculpas para me ligar – pausadamente, retoma – você ligou e isso é suficiente.
- Se você diz... não queria incomodar... é que ás vezes... – emudeço a voz por alguns segundos, esperando que ela, do outro lado da linha, viesse com qualquer assunto que me resgatasse do sentimento patético - ... às vezes, não faz mal ligar sem motivo.
- Faz bem. Já tomou o seu café? – no mesmo tom inabalável.
- Faz alguns minutos... – lanço o olhar na xícara ainda morna, sob a mesa de centro da sala.
- Isso vai acabar com seu estômago qualquer dia desses... – ela acidamente critica.
- É ainda o que me sobra intacto.
- (...)
- E como estão as coisas? Fiquei sabendo da novidade da promoção...
- Ah é? – pigarreiou – saiu. Finalmente.
- Era o que você mais queria, né? Fico feliz por isso. – e eu esboço um sorriso “telefônico” visivelmente sarcástico.
- Você não costumava ser irônica. – num tom de voz entre ríspido e ressentido.
- Nem você costumava ir embora – eu retomo as rédeas.
- Ainda não, dá... é impossível conversar com você sem que essa arrogância exista...
- Agora sou arrogante? Há!
- Não disse isso... você entende o que convém.
- Você – ênfase – é o que convém.
Percebo que ela enche os pulmões de ar e, na minha lividez de assisti-la sem sequer observá-la, prevejo que levaria a mão à altura das sobrancelhas, franziria a testa e disparava:
- Sabe, Lisa? É por isso ainda que não lhe liguei. Você e esse seu orgulho ferido. Maldito orgulho ferido! - esbravejou.
- Tudo bem, Ana. Desculpas pela rispidez... é incontrolável. Sei que nem deveria lhe ligar, foi o que você pediu, mas eu...
- Não, Lisa! È... é bom ouvir você...
Continuou...
- ... tem algo na sua voz que ainda me ...
E uma terceira voz, também feminina, porém um pouco mais aveludada, invade a ligação:
- Ana, onde você guarda os cobertores? - silêncio.
Do outro lado da linha, á escuta, eu empalideço. Eu me espalho e me remonto tantas vezes, que ao voltar ao controle das ações, há partes dormentes, seriamente afetadas. Algumas partes ainda pelo chão. Ela, no que me pareceu uma dissimulação, desmonta o tom de voz da última frase e se volta a mim com um novo, casto e artificial:
- Preciso desligar, Lisa. Assim que puder, eu ligo para você. Agora é que...
- Não foi você quem disse para não inventar desculpas?
O período de tempo compreendido entre o fim da ligação e a hora que adormeci, confesso, não possuo mínima idéia. As avalanches em mim recomeçaram; morro a baixo, destruíram toda e qualquer pretensão. A terceira voz entrara pelos ouvidos com o peso da notícia desastrosa. Tudo em mim se desprendeu. As imagens que eu guardava de Ana: os dias dos cabelos molhados, as tardes em que passamos perambulando pelas ruas, as manhãs em que, ainda na cama, ficávamos horas deitadas com as bocas próximas, desvendando e reconhecendo-se uma na outra, as gargalhadas sempre bem vindas; toda reminiscência virara um desastroso conteúdo indigerível e intragável. O gosto amargo dos últimos dias ao lado dela parecia recente, era ontem. Éramos. Não somos mais. Lembrança por lembrança, a outra voz no fundo da ligação, foi corroendo, embebendo de dor e ódio a imagem de Ana. Levantei-me do sofá ainda com pernas e mãos dormentes, algum tremor nas pontas dos dedos. Andei um pouco sem direção pela casa. Abri e fechei a geladeira; liguei e desliguei o som. O tremor persistia; a voz impregnada no consciente; Ana e a raiva dela, Ana e o ódio dela, Ana e tudo aquilo que eu quis por Ana, Ana e só Ana. O vazio que brotou naquela hora talvez nem Ana preencheria. Todas as músicas de amor fariam sentido, todas as lágrimas despejadas teriam seu valor, todos os luares seriam mais dolorosos e melhor lembrados, todas as tardes na enseada, vagando perdida e sozinha, pareceriam mais minhas: o amor que eu sentia por Ana, num egoísmo anômalo, convertera-se em minha dor. O timbre da voz que destruía Ana em mim me atormentava e me libertava: havia cortado os finíssimos barbantes que me mantinham presa às sensações, às esperanças, a Ana. Era, finalmente, algo além de mim, ao acaso, apunhalando o mito de Ana no meu ser. “Ana não é mais sua”, uma voz gritava em mim, com o mesmo timbre da terceira voz ao telefone.
Vejo, hoje, que Ana ainda existe em mim e, embora com a mesma dor, é uma cicatriz (ou a tentativa disso...). Ana não é mais a Ana. Já se tornou a sombra dela, o que há de melhor nela em mim. Tamanho foi meu sentimento por ela que não me permiti guardar rancores e, por isso, são as virtudes de Ana que alegram meu sorriso sempre que a imagem dela me acode. Em mim, Ana é a brisa, o vento calmo e sereno que arrepia, gela, mas passa: é só o aviso parcimonioso de que existe um mar bravo além da costa. É a certeza da solidão que não desespera, é a música que toca no rádio e não entristece. Ana perdeu seu sentido: é o sentido por si mesma. Ana deixou de ser um nome e passou a ser um sentimento. Ana vive em mim. Talvez se ela repousasse seus ariscos olhos sobre o meu sóbrio olhar, por se enxergar tão brilhante e óbvia em mim, imagino que chorasse por algum tempo, sem secar as lágrimas - o que é de seu feitio. E se chorasse, eu sorriria – e não de felicidade, mas da cumplicidade que sempre nos foi peculiar.
Sei que perambula por aí, em outros braços, provando de outros beijos, vivendo uma outra vida que eu rejeitaria. Já sei que soa platônico e sonhador demais mas, preciso disso enquanto não encontrar a fenda certa que arranque-a para fora de mim. A outra voz no telefone agora lateja, mas não arde. É apenas o meu divisor d’águas. Entre agradecê-la pelo momento ou expurgá-la da minha identidade, prefiro conviver com a tranqüilidade mordida de que essa terceira voz me proporcionou. Bem ou mal, Ana ainda me pertence, mesmo que a voz que atualmente a envolva não seja a minha. Para esta, eu deixo a Ana que eu não quero mais.
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